O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

terça-feira, 21 de abril de 2009

Textos Insones #5

Nas ruas de Évora

Em Évora existiam ruas proibidas e assustadoras na moraria, onde evitei entrar mesmo de dia, como a Rua do Manuel de Olival, centro da prostituição e marginalidade entre muralhas que desagua no jardim das canas, transformado depois num despidinho, mesmo em frente do Teatro Garcia de Resende; aqui existia uma esplanada felliniana relativamente segura e movimentada, animada também por seres decadentes provenientes do Manuel de Olival, onde uma vez apanhei um dos maiores sustos da minha vida: estava sentada num agradável fim de tarde veranil com umas amigas a conversar, os seres estranhos sentavam-se habitualmente num baixo muro lateral junto ao jardim, por baixo da sombra, como sábios alentejanos; então um miúdo com cerca de seis anos aproximou-se da nossa mesa agarrando-se ao suporte do guarda-sol e olhou-nos com os seus estranhos olhos azuis acinzentados; depois esboçou um sorriso malicioso, que nunca mais esqueci, porque os seus dentes estavam todos cariados, tinham buracos negros. Évora tem destas coisas no seu interior, é uma cidade que sorri sem a ingenuidade infantil, uma cidade que ri com os dentes cariados e podres da história.
Não sei que estranho e potente íman tem a cidade branca das muralhas que é uma constante presença na minha memória e ausência na vida diária – sei apenas que o seu magnetismo é maléfico. Reza a lenda que a cidade foi amaldiçoada por uma bruxa, quando os cristãos a conquistaram aos mouros; não sei se é verdade, mas dizem que foi um acto de vingança, uma bruxa enterrou a cabeça de uma mula numa das portas da cidade. Se calhar foi no Arco da rua D. Isabel, por isso me assustei sempre que tive de passar por baixo das suas pedras. Évora, sempre que posso não vou lá, conheço aquelas calçadas de cor e salteado, quando tenho de lá ir apanho a última camioneta disponível, demoro um tempo infinito a sair da minha casa em Lisboa, arranjo todo o tipo de pretextos para me atrasar. Nem sempre foi assim, a relação com a cidade foi sempre conflitual, mas após a morte de um amigo pintor, o José de Carvalho Guinapo, em Setembro de 1991, passei a odiar aquele branco das paredes, aquelas ruas labirínticas que vão sempre dar ao mesmo sítio. Porque o Zé sabia que ia morrer, estava doente e omitiu-me esse facto, ele voltou para Évora para poder terminar – e morreu sozinho na sua casa, na sua cidade, encontram-no morto com a obra em seu redor, já estava assim há alguns dias. Évora é uma cidade que cheira a morte, eu sei que posso também lá ficar emparedada nalguma parede, mas prefiro viver ao pé do Tejo, ao pé do mar, por enquanto ainda tenho muitas ruas e calçadas novas para percorrer, quero gastar muitas solas de sapatos perdendo-me em cidades por este mundo fora, espreitando discretamente janelas e portas com universos desconhecidos; devo isso também ao Zé de Carvalho, não me esqueço das suas palavras, da sua luta até ao fim, da sua força e fé no trabalho artístico, só a morte o venceu. Évora habita a minha memória numa espécie de sepultura em vida, que me chama, constantemente, mas prefiro olhá-la bela e distante na estrada, sobretudo, quando vou a caminho de Espanha, assemelha-se a um encantamento, assim ao longe até parece ficção.
Postado no Insónia a 25/1/2006

10 comentários:

  1. Ola
    Lembro e conheço bem a esplanada junto ao teatro garcia de resende.
    Impressionou-me a historia desse Jose Carvalho... Eu pessoalmente guardei de Évora uma memória positiva... Talvez por ter sido apenas uma passagem. Mas de facto sinto-me atraído pela cidade. Apesar de se poder dizer que a verdadeira Évora, aquela tradicional, talvez já não exista. Das poucas vezes que lá fui nos últimos tempos, já não senti o que sentia...
    X

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  2. Olá X, obrigada pelo teu comentário. Évora continua no mesmo sitio , aquela assim verdadeira como a morte que um dia há-de chegar. O teu eu tradicional é que já não existe, já não sentes o mesmo porque estás mais velho, mais próximo da morte também e não fui eu que e inventei isso. Évora e a capela dos ossinhos já existia muito antes de nós.

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  3. Compreendo-a. Trabalhei em Évora durante cerca de dois anos e senti esse estranho amaldiçoamento que cresce cada dia nas ruas da cidade. Quebrou-se, também para mim, uma Évora encantada, idílica.
    No entanto, como tudo o que existe, o potencial positivo e negativo dos lugares está, antes de mais, em cada um de nós. Cito, já não sei quem, "l'espace on le porte en soi"...
    O principal problema de Évora, não será a incapacidade localista de viver o presente tendo como pano de fundo um passado enorme que amedronta e estiola? Isto e talvez também a falsa radicalidade (leia-se esteriotipia) da resistência ideológica.
    Certo é que Évora é um lugar que convive particularmente mal com o futuro, o que não deixa de ser estranho quando foi culturalmente marcante (por vezes vanguardista) do século XVIII para trás.

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  4. Leia-se, corrijo, esterEotipia(!!!).

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  5. Digo ainda, a propósito de Évora ter sido culturalmente marcante: Não esqueço os séculos da Inquisição e outros factores tenebrosos que marcam a história da cidade. Mas também é verdade que, sendo um lugar de sinais contraditórios, Évora possui uma força cultural invulgar.

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  6. Olá Roteia, seja bem vinda à casa no tempo. Quanto a Évora acho-a muito encantada, mas à distância, para poder sentir saudades, que é uma coisa bem portuguesa. E sempre que posso naõ vou lá.

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  7. Vivi um ano na rua Manuel do Olival :D

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  8. Ola Maria Joao
    Sabes, por pouco que não encontrei a felicidade em Évora. Vim a encontrá-la mais tarde. Mas encontrei. É bom quando sentimos que a encontrámos. É um sentimento ímpar. O problema é quando ainda não podemos vivê-la em toda a sua plenitude. Sentimos uma tristeza e uma angústia muito profunda.

    X

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  9. Olá X,
    Obrigada pela visita e continuação de felicidades.

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