O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Dia-a-dia #103

Em 2002, estava no aeroporto de Milão e não se podia fumar em lado nenhum. Como ainda faltava tempo para entrar no avião, dirigi-me ao café. Já com um café na mão, senti o cheiro do fumo que segui de imediato e deparei-me com duas hospedeiras da Luftansa, sentadas numa mesa muito satisfeitas, de cigarro em punho. Aproximei-me e perguntei-lhes em inglês se ali se podia fumar, porque estava mesmo com muita vontade. Responderam-me que não estava nada afixado nas paredes a proibir e se alguém me incomodasse com o assunto, deveria responder que eles tinham começado. As alemãs apontaram na sua direcção. "Eles" era um grupo divertido que ali perto falavam alto, riam e fumavam. Eles eram gregos. Penso que a Europa tem muito a perder no caso da Grécia sair do Euro.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Dia-a-dia # 102




Lembro-me bem: estava numa aula de geometria descritiva na António Arroio, um colega entrou tarde na sala, com um enorme ramo de cravos vermelhos na mão, ofereceu um ao professor e depois foi distribuindo-os. Ele era mais velho, misterioso, escrevia poemas entre cervejas no café Louvre e tinha uns olhos muito verdes. Quando chegou a minha vez disse-me: morreu Zeca Afonso. Faz hoje 25 anos que me ofereceram pela primeira vez um cravo vermelho.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Poema #78

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Poema #77

DESENHADORES DE LABIRINTOS
I

o homem fuma fora de casa
com os pés sobre o degrau de pedra
entre duas portas de madeira
segura numa mão o cinzeiro noutra o cigarro

II

na corrente de ar e com todas as luzes apagadas
assim entrámos pela noite impressa nos vidros
e era fevereiro com incessantes chuvas
que sob alpendres ou desabrigados
nos surpreendeu contra o rosto descoberto
o mês novo e sem nenhum traço de violência significava
que também para nós nunca tinha havido princípio

III

pensavas ter de dizer eu sou o meu rosto reflectido
nos vidros da janela desdobrado em difusos traços
toda a memória a teria trocado por concretos
lugares de pedra poderia cantar os pátios que são
sem princípio os pátios de chão de xadrez
por que passo pisando por superstição apenas
as lajes negras os dedos enfiados nos bolsos
dos jeans um encolher de ombros o sinal
de uma vaga indiferença ou indecisão

IV

entraremos nas palavras como aqueles estudantes
que se sentam em cafés lendo jornais na primavera
e furtivamente levantam a cabeça para olhar em redor
quem haveria agora para ver se olhando em redor
disfarçadamente procurasses um rosto entre tantos

V

ou talvez fosse precipitado chegar a dizer
o que se viu e desejou pois para efeitos
do cómico é sempre trágico acreditar
demasiado cedo em pequenas traições
restam longos caminhos de memória
semeados em caixas de metal presas por fios
de estopa semeados ao acaso pela casa
em baixo de camas em recônditas gavetas
esquecidas essa persistência pega em guardar
todas as coisas em não deitar nada fora
não sabes se é aí que a mesquinhez te visita
ou se apenas uma vaga tristeza plena de desdém
um arquivo dado à certeza da mortalidade própria
(de que consolo servirá saber todo o fim democrático?)

VI

a chuva de fevereiro não chega a macerar
transpõe as páginas dos cadernos esborrata
a tinta traços como novelos que fazes e desfazes
põe entre eles a memória é como um nevoeiro
que lentamente se instala mesmo as palavras
que com tanto cuidado a guardam
às vezes tornam-se vazias que significariam?
é como uma fala surda uma coisa que tentas
escavar só pelo seu sentido acre como ázimo
pão muitos dias esquecidos entre os vimes
de um cesto escondida coisa amarga
ferida que não podes evitar coçar

VII

somos este encontro adiado no tráfego
de ruas que se cruzam na pressa com
que corres a cidade o seu espectáculo
esgotado na subida de escadas limpas
uma impressão indelével no limiar de cada porta
o ar agonizando nos pulmões arquejando aí
está o lugar onde fumas a voz que como passos
numa linha de areia se apaga a mulher
falou o que ela disse a água da voz
que não pudeste guardar e um sentido
de sede por resposta sempre acreditaste
que fosse esse o secreto motivo
por que os homens desenham labirintos
por isso que nas cidades algumas ruas se cruzam

Tatiana Faia –" Lugano". Lisboa: Artefacto, 2001.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Dia-a-dia #101

Gosto desta vida de investigadora: saio de casa para a biblioteca da Gulbenkian ou Nacional, vou a pé, raramente ando de transportes, só quando tenho de ir às Belas ou à Cidade Universitária. No meu dia-a-dia faço umas belas caminhadas. Estou a investigar cerca de cinco horas por dia. Agora, como tenho de acabar um capítulo, vou ter de fazer mais horas por dia, o que é até perigoso. Porque as asneiras disparam, acontecem coisas como deixar as chaves de casa na porta ou ir pagar uma conta ao Multibanco e perdê-la pelo caminho. A última foi dar literalmente um banho de café ao meu protátil. Entretanto, um amigo limpo-o e vai mudar-lhe o teclado queimado, mas ainda não está pronto, falta uma peça. Agora ando com um portátil dele, que é bastante pesado, ao contrário do meu que é maneirinho. Desconfio que o pequeno quando voltar a funcionar, vai andar um pouquinho nervoso.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Dia-a-dia #100

Adormeceu um velhote que estava sentado perto de mim na biblioteca: entre livros começou a ressonar baixinho. Fiz sinal à Ana, que sorriu, mas com um ar preocupado. Tentei ver qual era o livro que estava a ler: o título era em inglês, algo como história social da escravatura negra na América. Enfim, depois lá acordou, recompôs-se e eu não consegui tirar a referência do livro. Daqui a uns anos deve acontecer-me o mesmo.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Dia-a-dia #99


Coisas que só podem acontecer neste sol de inverno: fui comprar cigarros numa tabacaria daquelas de Lisboa em vias de extinção, o dono tem umas fofas barbas brancas, é afável e agradece-me sempre que pago com moedas – as máquinas de cigarros agora também têm umas gravações a agradecer, aliás, as máquinas têm sempre uma voz feminina gravada, porque será? Voltando à tabacaria, pelo caminho, no prédio ao lado, a janela estava fechada e tinha um cortinado branco. Entre o cortinado e o vidro da janela estava uma gata refastelada em posição acrobática – acho que era gata porque tinha três cores, fundo negro com salpicos ferrugem e branco. Parei logo para a observar melhor, estava toda enroscada na sesta, com uma pata sobre os olhos. Nisto, ainda vislumbrei um dos olhos a abrir muito verde na minha direcção, que se fechou de automático e com indiferença. O Sol batia na vidraça, que esperta a bichana, naquele rés-do-chão deveria ser o canto da casa mais quente. E quando entrei na tabacaria, achei que o dono deveria ser parente próximo da gata, talvez o avô felpudo.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Dia-a-dia #98


Telefono para uma amiga que vive na Alemanha e oiço a minha voz constantemente em eco. Aviso-a da situação e ela do outro lado diz que é comum acontecer. Então, lá mexe no telefone ou muda de posição e melhorou. Mas a sensação foi terrível: relatava acontecimentos e as palavras arrastavam-se, se me ria aquilo prolongava-se, incomodou-me. Deve estar relacionado com os satélites que andam lá em cima e permitem a comunicação em grandes distâncias. Estou habituada ao espelho, logo de manhã olho-o antes de lavar a cara e beber café, lá se vai vendo as marcas da passagem do tempo no rosto. Agora o reflexo sonoro tem que se lhe diga, é muito mais violento.