O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

sábado, 29 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #145

Voltei ontem das Terras de Além (Tejo), como choveu está tudo verde, já há pasto para os animais, ao contrário do ano anterior. A acompanhar os verdes esteve um belíssimo sol de Inverno. Agora por aqui em Lisboa sinto mesmo que vim de Marte.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #144


Da experiência de combate pela qual passei recentemente, falta apenas contar-vos a história da D. Vitória: era uma anciã que tinha algo da D. Secundina, do “ Mau Tempo no Canal” porque como diria Vitorino Nemésio “(…) a velha falava assim naturalmente, sem ódio nem queixas, como quem chama pelos verdadeiros nomes as espécies da fauna de um país de que é simples explorador e que está quase a largar.” Ela era de facto rija e horrível em simultâneo, não estava tão surda como o personagem e seria um pouco mais nova, rondava os oitenta anos. Eu simpatizei mal lhe ouvi os roncos peculiares que animavam a enfermaria. Das primeiras vezes que lhe ouvi a voz, estava já ela a mandar vir com o enfermeiro João, porque queria colocar a sua esquelética na boca. A primeira vez que me dirigiu a palavra foi bonito: eu estava a conversar com a Luísa, uma simpática enfermeira que ficou na cama ao lado da minha, internada de urgência e seria operada no dia seguinte. Trocávamos ideias sobre as experiências das anestesias e oiço assim muito alto: Olha! Esta não diz coisa com coisa. Como sabem, é difícil rir num pós-operatório, a D. Vitória era perigosa nesse sentido. Ela passava o tempo a mandar vir com o enfermeiro João que era um típico beirão, na casa dos quarenta anos, gorducho e entroncado, poucas falas e muito competente. Ela lá no fundo deveria de achar que aquilo não era sítio para homens e o desgraçado apanhava por tabela, mas o João era tão boa pessoa, que voltava costas, encolhia os ombros e ria-se. Se lhe traziam chá ela praguejava, dizia que não bebia aquela merd…, também não gostava de iogurtes, estava revoltada porque tinha trazido uma caixa com os seus medicamentos todos organizados e não lhos davam a horas. Depois, levantava-se da cama sozinha, não queria ajuda e arrancava com dores a quinta a fundo para a casa de banho, uma força da natureza. Uma das vezes tomou um pouco de chá com os comprimidos e vomitou. E lá apareceu o anjo de nome Clara, que a acalmou dizendo, tem toda a razão D. Vitória, eu é que a convenci a tomar chá, eu já não lhe trago mais. A Clara era assim, e depois limpou a porcaria toda. De seguida tentou animá-la: D. Vitória conte-nos lá, a suas amigas ainda não sabem que tem um pretendente lá no lar. A D. Vitória respondeu: é um velho de bengala, ele não tem piada nenhuma e outro dia quis roubar-me um beijo, mas ele mete-se com todas; eu fiquei viúva aos trinta e seis anos e nunca mais me interessei por essas coisas. Mas a situação mais cómica de todas foi quando o enfermeiro João se dirigiu a ela, com muito cuidado para lhe dizer que era necessário fazer um clister e depois saiu da enfermaria para ir buscar o material. A D. Vitória comentou bem alto: ENTÃO ESTE AGORA QUER IR-ME AO …?

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Poema #90

POEMA DE NATAL



Para todos os leitores do Insónia


Naquele tempo as luzes duravam toda a
noite. Mas faltava-lhes a eléctrica eficácia de
quem chama, vinde todos comprar um souvenir,
reis magros, corretores da bolsa, funcionários
e teleguiadas tias por estrela que conduz aos
mares do sul, cristãos e bronzeados, a minha vida
dava um filme. Nem sabe o que me aconteceu, o
vestido da Senhora não traz instruções de lavagem
e a vaquinha de polietileno engorda sozinha, eu próprio
já não sinto os olhos de tanto ver as luzes acender e
apagar. Mas uma coisa é certa: Jesus se fosse vivo
havia de ter um partido, ler os tops da Fnac e saber
de cor o nome de todos os ministros. Havia de
sair de casa pela porta da frente, cumprimentar
os jornalistas e conceder duas medidas correctivas dos
excessos do capitalismo; depois, no último degrau
levantaria a palma de sua mão direita e os passantes,
subitamente inundados de um fulgor renascido,
estugariam o passo e entrariam no metro, sorrindo,
acreditando um pouco mais no reino
que tarda a ter um fim.


Rui Costa

In Insónia, 18/12/2007 (aqui)
 
Obrigada Henrique

Dia-a-dia #143

O pessoal da edp é tão simpático, acabaram-me agora de ligar a dizer que tinham sido devolvidas várias cartas com facturas que me tinham enviado. Pois, respondi que era tarde, que ontem me tinham cortado a electricidade sem aviso, já tinha tratado de tudo, já tinha electricidade. A moça ao telefone pediu muita desculpa, disse que houve problemas de comunicação dentro da empresa. Ainda tive para co...mentar que isso se devia a problema linguisticos, de tradução português-chinês, mas não quis ser politicamente incorrecta. Expliquei-lhe que apesar de me encontrar num pós-operatório já tinha tratado de tudo, mas assim que estivesse melhor me dirigia à empresa para fazer a reclamação por escrito que a situação merece. E que já sabia do actual mau funcionamento dos ctt na regiãode Lisboa, e que o meu caso não tinha sido o único, que os ctt também vão levar com a devida reclamação. Despedi-me desejando-lhe boas festas. Acho que de futuro vamos receber estes telefonemas da edp em chinês para ninguém entender (antes ou depois de cortarem a electricidade com multas).

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #142

Hoje de manhã fui acordada por dois funcionários da edp que me cortaram a electricidade, devido à falta de pagamentos. Maravilhosos, tudo isto porque não recebi as facturas pelo correio, aliás, tenho tido problemas vários com entregas de cartas de há um ano para cá. Já fiz uma reclamação o ano que passou nos correios por causa disso, mas a maluquise continua. Entretanto, apanhei um taxi e fui à sede da edp, expliquei-lhes que estou num pós-operatório, que não posso estar em casa sem electricidade, que a minha irmã está a trabalhar não pode estar ali. Enfim, mudei os processos de pagamento, vou passar a fazer tudo pela internet, paguei a dívida que não era nada de outro mundo e fiz pressão para que viessem hoje ligar-me a electricidade. Estou à espera, porque se calhar só vêm amanhã. Este país está bonito está, quando estiver melhor vou reclamar na edp e nos correios. Se calhar não adianta nada, mas calada não fico. Hoje tratei tudo diplomáticamente e evitei irritar-me, que ainda se abria aqui algum ponto da cicatriz e era perigoso.


segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Poema #89

E porque hoje é o aniversário de Fernando Lopes -Graça, aqui vos deixo um ciclo de peças "velhacas" deste compositor, apelidadas assim pelo próprio devido a serem dificeis. São as " Três Líricas Castelhanas" de Luís de Camões, ao clicarem nos títulos de cada uma poderão escutá-las interpretadas pelo meu coro, o Coro de Câmara da Universidade de Lisboa, dirigido por José Robert em 2006

OJOS, HERIDO ME HABÉIS...
 
mote:

Ojos, herido me habéis,
acabad ya de matarme;
mas, muerto, volvé a mirarme,
porque me resuscitéis.

 voltas:

Pues me disteis tal herida
con gana de darme muerte,
el morir me es dulce suerte,
pues con morir me dais vida.
Ojos ¿qué os detenéis?
Acabad ya de matarme;
mas, muerto, volvé a mirarme,
porque me resuscitéis.

La llaga, cierto, ya es mía,
aunque, ojos, vos no querráis;
mas si la muerte me dais,
el morir me es alegría.
Y así digo que acabéis,
oh ojos, ya de matarme;
mas, muerto, volvé a mirarme,
porque me resuscitéis.

DE VUESTROS OJOS CENTELLAS

mote:

De vuestros ojos centellas,
que encienden pechos de hielo
suben por el aire al cielo,y en llegando son estrellas.

voltas:

Falsos loores os dan,
que essas centellas tan raras
no son nel cielo más claras
que en los ojos donde están.
Porque cuando miro en ellas
de como alumbran el suelo
no sé que serán nel cielo;
mas sé que acá son estrellas.

Ni se puede presumir
que al cielo suban, Senora,
que la lumbre que en vos mora
no tiene más que subir;
mas pienso que dán querellas
a Dios nel octavo cielo,
porque son acá en el suelo,
dos tan hermosas estrelas.

DO LA MI VENTURA

mote:

Do la mi ventura,
que non veo alguna.

voltas:

Sepa quién padece
que en la sepultura
se esconde ventura
de quién la merece.
Allá me parece
que quiere fortuna
que yo halle alguna.

Naciendo mezquino,
dolor fué mi cama;
tristeza fué el ama,
cuidado el padrino.
Vestióse el destino
negra vestidura:
huyó la ventura.

No se halló tormento
que alli no se hallasse;
ni bien que pasase,
sino como viento.
Oh, que nacimiento,
que luego en la cuna
me seguió fortuna!

Esta dicha mía
que siempre busqué,
buscandola, hallé
que no la hallaría;
que, quién nace en día
d'estrella tan dura,
nunca halla ventura.

No puso mi estrella
más ventura en mi;
así vive en fin
quién nace sin ella.
No me quejo della;
quéjome que atura
vida tan escura.


Luís de Camões

Dia-a-dia #141

Quando acordei da cirurgia na enfermaria onde estive internada recentemente, havia um enorme movimento e as camas estavam todas ocupadas, ao contrário da véspera da operação, onde apenas eramos três por lá. Isso acontece porque hospital onde estive tem urgências que funcionam bem, mal era detetado um problema em alguém, automaticamente era realizado o internamento e a intervenção. Foi o caso da minha companheira do lado, a Luísa, uma simpática enfermeira de Gouveia, da Marta, que estava na cama ao lado da Luísa, e também da D. Beatriz, que ficou na cama entre a Fernanda e a D. Vitória. Só eu, a Fernanda e a D. Vitória tivemos cirurgias marcadas com antecedência. A fragilidade física e psicológica em que todas nos encontrávamos fez com que partilhássemos vivências, sobretudo quando tomávamos as nossas refeições em conjunto, sentadas nas mesas entre as camas da enfermaria. Eramos muito diferentes, com problemas vários e em faixas etárias diversas, mas estávamos ali numa experiência a que apelidei de combate. Numa altura onde se fala em reduzir o número de camas nos hospitais públicos e que o estado social se encontra ameaçado eu pergunto-me: o que de futuro poderia acontecer àqueles três casos que foram internados de urgência, se não existissem camas vagas para elas? É revoltante, uma cama num hospital público não é apenas um número, corresponde sim a uma vida humana, que é tratada e salva.

domingo, 16 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #140


 

Como hoje é domingo, vou falar-vos de um dos anjos com que me cruzei no hospital, onde fiquei recentemente internada em Coimbra. Era uma auxiliar de idade indefinida, andava entre os trinta e os quarenta, mas havia algo de infantil nela, no seu sorriso doce e nos olhos verdes muito brilhantes. Tinha também um modo especial de lidar com as anciãs que estavam internadas naquelas enfermarias, sobretudo com os casos difíceis. Chamava-se Clara. Ela começou por se meter comigo por causa das minhas pantufas, que são uns croques vermelhos felpudos. Ora, nos hospitais toda a gente trabalha de croques e ela achou imensa piada à versão confortável que eu tinha nos pés. Eu lá lhe contei que os tinha arranjado numa loja em Lisboa, que tem uma vaca enorme à porta. Encontrava-a sempre no corredor das enfermarias, normalmente, a transportar alguma anciã em cadeira de rodas na direção da casa de banho, sempre na brincadeira com elas e a animá-las, uma maravilha. Como no hospital tudo estava bem aquecido, andava por lá de pijama, não era necessário colocar o robe. Mas quando comecei a dar umas escapadelas lá fora para fumar cigarrinhos, colocava o meu robe vermelho com capuz, que é bastante quente. A primeira vez que a Clara me apanhou nessa figura, meteu-se logo comigo, perguntou-me onde é que eu ia tão chique, com um robe a condizer com os croques. Respondi-lhe que ia lá fora fumar um daqueles cigarros que sabem a ar e que tem 0.1 de nicotina. Ela riu-se e comentou que não percebia nada de cigarros, mas se eram daquele muitos fininhos me ficavam bem, porque eram parecidos aos que as senhoras fumavam nos filmes antigos. Voltando ainda ao facto de este anjo animar as difíceis anciãs, na véspera da operação, à noite fizeram-me uma preparação para limpar o intestino e andava eu no corredor às voltas há espera de efeitos, quando passou a Clara com uma anciã de cadeira de rodas. A anciã com uns olhos muito vivos começou logo a meter-se comigo, a mandar bocas do estilo: então, anda aqui a fazer ginástica a essas pernas? Ao que respondi, que andava às voltas a ver se funcionava. A Clara abanou a cabeça e comentou que ela não ouvia e depois gritou-lhe: ELA ESTÁ A VER SE CONSEGUE FAZER COCÓ e foram as duas embora a rir à gargalhada.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #139


A principal diferença de uma operação num hospital privado ou num público é que no segundo ficamos numa enfermaria. De resto, como podem verificar nos meus anteriores relatos, estão de volta de nós pessoas competentes e infelizmente também podemos ter o azar de nos cruzarmos com algum ser daqueles que agora não vou classificar. Na véspera de ser operada na semana passada, entrei de manhã pela primeira vez na enfermaria onde fiquei. Tinha apenas duas das seis camas ocupadas, onde dormiam duas mulheres. Fui com a minha mãe e fomos guiadas por uma enfermeira amorosa, que indicou qual era o meu armário, me deu a escolher a cama. Preferi ficar junto da janela. Arrumei as coisas, despedi-me da minha mãe que foi almoçar e só voltou à tarde. Passado um bocado, a Fernanda que estava na cama em frente à minha, acordou e também a Teresa, que estava na cama ao lado. A Fernanda estava quietinha pois tinha sido operada na véspera, aparentava ser da minha idade. A Teresa levantou-se logo e contou-me que em princípio ia ter alta nesse dia. Depois chegou a D. Vitória, acabada de ser operada. E também o nosso almoço que foi colocado nas mesas entre as camas. A Fernanda, então, começou a movimentar-se com alguma dificuldade e eu e a Teresa ajudámo-la a sair da cama. Era rija e dizia que só se sentia bem sentada na cadeira, direita, preferia essa posição a estar deitada. O meu almoço e o da Fernanda era um caldo de galinha deslavado, um sumo e um iogurte. A Teresa já tinha direito a uma refeição completa, com esparguete e tudo. Começamos assim a conversar ao som dos cómicos roncos da D. Vitória, que até a ressonar tinha uma personalidade peculiar. Depois do almoço a Teresa teve alta e foi-se embora com o marido. Foi então que fiquei só com a Fernanda, que depois da sesta e da minha mãe me visitar outra vez, a pouco e pouco foi falando dela. Acho que ganhou confiança comigo, porque eu a ajudava sempre a sair da cama, mal notava que era necessário e ela não queria tocar à campainha para chamar a enfermeira, não tinha feitio para pedir ajuda. A Fernanda tinha sete filhos e trabalhava numa fazenda perto de Tomar com o marido. Eu estranhei o termo fazenda, por ser brasileiro, pensei que seria uma quinta, mas não comentei nada. Contou-me que dos cinco filhos mais velhos, que eram do primeiro marido, três já não viviam com ela, trabalhavam e já tinham as suas vidas. Em casa tinham ficado duas raparigas mais velhas a tomar conta dos dois rapazes mais novos, um com onze anos e o outro, que era muito rabino, com seis. Tinha ficado também o pai dos rapazes que era o seu segundo marido. E nisto pediu-me um favor: foi buscar um papel e pediu-me para eu lhe ler o que lá estava. Contou-me que não sabia ler, só sabia escrever o nome dela. O papel era um folheto informativo do hospital, onde descrevia a operação à qual ela tinha sido submetida. Estávamos as duas sozinhas na enfermaria e a D. Victória roncava. Li-lhe o texto mas sempre que tropeçava num termo técnico que não entendia comentava: sabe, eu sei ler mas não entendo tudo o que aqui está, já viu este palavrão? Ela ria um pouco aflita por causa da cicatriz na barriga que lhe dava dores. Continuamos uma boa vizinhança nesses dias de combate e ajudámos-mos mutuamente, com confiança uma na outra. Só contei à minha mãe que ela não sabia ler quando saímos do hospital, a minha mãe ficou em estado de choque, achava que ela já poderia ter aprendido, por causa dos filhos. Mas não, a Fernanda era pouco mais velha que eu, tinha 48 anos e não sabia ler nem escrever.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #138


Na semana passada a experiência de estar internada foi muito diferente da primeira vez, pois estive num Hospital Público em Coimbra. Em vez de um quarto individual fiquei numa enfermaria com seis camas e lá fora estava um corredor com várias enfermarias. Não me lembro de acordar no recobro, lembro-me de já estar na enfermaria, de ver a minha mãe e pedir-lhe para o meu pai ir à farmácia comprar umas esponjas para colocar nos ouvidos, pois estava imenso barulho. Depois apareceu o Manuel A. Domingos, que me ofereceu um livro de poemas seus. Quando o meu pai apareceu com as esponjas para o silêncio, consegui finalmente descansar. No dia seguinte é que foi pior: apareceu-me um ser antipático à frente, perguntou-me que dor sentia numa escala de 0-10, ao que respondi 4. O ser informou-me que tinha de me mexer da cama para ir tomar banho. Ao primeiro movimento, a escala das dores aumentou vertiginosamente, e disse-lhe para desaparecer da minha frente, que não a queria ver nunca mais. Nisto apareceu a minha mãe, estava eu lavada em lágrimas a queixar-me de que não me conseguia mexer. O ser reapareceu e disse à minha mãe que não podia estar ali àquela hora, as visitas só começavam às 14h. Saíram então as duas da enfermaria, na altura não sei o que falaram. Depois surgiram duas auxiliares amorosas que me explicaram como me podia mover e me ajudaram a sair da cama e sentaram-me numa cadeira de rodas. Apareceu aquele ser outra vez e disse-lhe algo como deve achar que eu tenho obrigação de saber como isto se faz, não? Olhe que nunca passei por uma situação destas. E mais uma vez lhe disse para desaparecer da minha frente, que não a queria ver nunca mais. As auxiliares levaram-me para a casa de banho e iniciaram a higiene com imenso cuidado. De vez em quando lá via também o ser com ar de quem comandava as operações. Nisto desfaleci e lembro-me de acordar no chão e ouvir, não sei se estaria a sonhar, que talvez eu seria epilética. Estavam várias pessoas em meu redor. Disse-lhes que não sou epilética, costumo é ter sempre a tensão muito baixa. Perguntaram-me se costumava desmaiar ao que respondi que a última vez foi quando saí da consulta médica onde me diagnosticaram o meu problema, e que ao balcão quando estava a pagar a consulta, desmaie e vomitei sem dar por nada, foi provavelmente um ataque de pânico. Depois, já deitada na enfermaria apareceu a minha mãe, contei-lhe o sucedido. Ela contou-me, furiosa, que ontem lhe tinham dito que poderia lá estar por volta das 11h para falar com a médica de serviço para obter informações da minha operação, mas que a enfermeira, aquele ser que detestei, a tinha mandado para a sala de espera lá fora, dizendo-lhe que alguém depois a ia chamar; e que tinha ficado ali até à hora das visitas e ninguém lhe tinha dito nada. Como eu sabia o nome do ser, disse à minha mãe para se dirigir à primeira sala antes das enfermarias, pois estava lá um administrativo muito simpático e competente em quem se podia confiar. A minha mãe foi lá fazer queixa do ser horrendo. Ainda me cruzei mais uma vez com o ser durante esta experiência de combate: ela acordou-me noutra madrugada e perguntou-me novamente como classificava a dor numa escala de 0-10. Respondi-lhe 3, porque estava quieta na cama, agora se me movia… Então ela deu-me dois comprimidos de paracetamol para tomar e respondi-lhe que esperava pelo pequeno-almoço, porque não engolia aqueles cachuchos em jejum.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #137


Os amigos próximos conhecem o meu acordar peculiar. De facto, nem sempre sou pacífica nesta coisa de passar do mundo dos sonhos para a realidade. E lidar com estranhos nestas situações pode ser perturbador. Isto a propósito ainda das cirurgias onde fui submetida a anestesia geral. Por uma questão de discrição não vou referir os nomes dos hospitais, nem os nomes das pessoas. A primeira vez foi num hospital privado no Porto. Lembro-me de acordar na maca em movimento e o meu médico me estar a dizer que tinham demorado um pouquinho mais porque tinham dado uns pontinhos na minha hérnia do hiato, que estava em mau sítio. Depois recordo-me de acordar no recobro e de lá estar uma enfermeira pouco simpática à qual me queixei de dores e ela não me ligou. Passado um bocado insisti e perguntei que me tinham colocado alguma coisa no soro e ela disse que sim. Passado um bocado comecei mesmo a ficar aflita e vieram mais pessoas, fizeram-me uma massagem e adormeci. Depois fui acordada por uma miúda amorosa, no quarto individual onde passei a noite, que me convenceu a beber um chá. Durante a noite foi assim, ora fechava os olhos e tinha a sensação que sonhava a alta velocidade, ora era acordada por este anjo, ou por um enfermeiro, que era de Elvas, ambos amorosos, que me convenciam a beber um sumo, um chá ou água. De manhã, uma enfermeira muito simpática ajudou-me a tomar um banho de gato e tudo correu bem. Quando ela se foi embora, aproveitei para fazer algo muito proibido: fumar um cigarro à janela. Depois adormeci a pensar que mais um bocado, os meus pais estariam lá para me irem buscar. Nisto fui acordada por aquele ser que tinha visto no recobro, que entrou disparada no meu quarto a dizer que tinha de lá sair antes do meio-dia, que devia decidir se queria lá ficar mais uma noite internada ou não. Perguntei-lhe as horas, eram dez horas da manhã. Disse-lhe que estava à espera dos meus pais para poder ir falar com o meu médico e referi qual era. O ser saiu do quarto à mesma velocidade com que entrou. Eu com alguma dificuldade levantei-me da cama e fui pelo desconhecido hospital procurar onde estaria o meu médico. Alguém me encontrou num corredor e acalmou-me, referindo que o meu médico já falaria comigo e levou-me para o quarto onde esperei pelos meus pais e pela alta que me foi dada.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Poema #88

SALADA PRIMITIVA

Leitor, se amas o campo e a natureza,
Se és bucólico e rude,
E na tua rudeza
Só respeitas a força e a saúde;
Se às convenções da sociedade opões
O desdém pelas normas e preceitos,
Que trazem pelo mundo contrafeitos
Cérebros e corações;

Se detestas o luxo e se preferes,
Francamente, às senhoras as mulheres,
E tens, como um pagão da velha Esparta,
Pulso rijo, alma ingénua e pança farta;
Se és algo panteísta e tens bem vivo
Esse afagado ideal
Do retrocesso ao homem primitivo,
Que nos tempos pré-históricos vivia
Muito perto do lobo e do chacal;
Se um ligeiro perfume de poesia
Que se ergue das campinas
Na paz, no encanto das manhãs tranquilas,
Te dilata as narinas
E enche de gozo as húmidas pupilas,
Leitor amigo, se assim és, vou dar-te
“Se a tanto me ajudar engenho e arte”
Uma antiga receita,
Que os rústicos instintos te deleita
E frémitos te põe na grenha hirsuta.
Leitor amigo, escuta:

Vai, como o padre-cura, cabisbaixo
Pelos vergéis da tua horta abaixo
Quando no mês de Abril, de manhã cedo,
O sol cai sobre as franças do arvoredo,
Para sorver aqueles bons orvalhos
Chorados pelos olhos das estrelas
Nos corações dos galhos;
Passarás pelas couves repolhudas
- Cuidado não te iludas,
Nem te importes com elas!
Vai andando...
Mas logo que tu passes
Ao campo das alfaces,
Pára, leitor amigo,
E faz o que te digo:
Escolhe dentre todas a mais bela,
Folhas finas, tenrinhas e viçosas
Como as folhas das rosas,
E enchendo uma gamela
De água pura e corrente,
Lava-a, refresca-a cuidadosamente.
Logo em seguida (e é o principal)
Que a tua mão, sem hesitar, lhe deite
Um fiozinho de azeite,
Vinagre forte e sal,
E ouvindo em roda o lúbrico sussurro
Da vida ansiosa a propagar-se, que erra
Em vibrações no ar,
Atira-te de bruços sobre a terra
E come-a devagar,
Filosoficamente, como um burro!

António de Macedo Papança, Conde de Monsaraz nasceu em Reguengos de Monsaraz a 18 de Julho de 1852 e morreu em Lisboa a 17 de Julho de 1913.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #136

Esta coisa de passar por anestesias gerais em operações tem que se lhe diga: na primeira operação onde fui submetida a isso, recordo-me que me fizeram perguntas que fui respondendo, do tipo mede 1.60, pesa xkg e etc... e no meio daquilo pediram-me para pensar numa ilha bonita, a que respondi que me estava a lembrar da  Ilha Farol na Ria Formosa. Lembro-me ainda que me perguntaram porque não pensava numa ilha nas Caraíbas e de responder que nunca lá tinha ido. Provavelmente adormeci e sonhei com a Ilha do Farol. Na operação da semana passada perguntaram-me as coisas do costume e no meio daquilo alguém comentou: tem a tensão 10-5 e a pulsação cardiaca a 70, tem um coração forte, isso é de corredora de fundo, pratica algum desporto? Eu respondi que não, que tenho de facto sempre a tensão baixa e o meu exercício cardiovascular é andar a pé. Ainda me lembro de perguntarem pelos meus 75 kg de peso e responder que estava correcto. Depois adormeci, provalvelmente sonhei que passeava nas ruas de Lisboa,  que é um dos pequenos  prazeres que tenho no dia-a-dia. E de certeza que estava confiante no meu coração de corredora de fundo para aguentar tudo.

domingo, 2 de dezembro de 2012

sábado, 1 de dezembro de 2012