1
Que importa o que não temos
quando a vida leva tudo o que nos dá
e a morte restitui-nos ao silêncio.
2
Naquele dia choveu ao contrário
a chuva fina e o seu silvo subiam do chão
e eu caindo da janela
sem um raio de sol que me amparasse.
3
Na noite clara da tua morte Pai
parto de vez para a margem da brandura
Levo nos olhos esta luz de dor
feixes opacos medas de cansaço
(como as que carregavas)
seara que nasce no sonho condenada
quando na alma a chama esmoreceu
Chegou-me a mim: já nada perdura
Querias saber o que era aquele nada
contra o qual lutava – sou eu
vazio de ti. Poupámos o Futuro.
4
Nem umas palavras de despedida
nem “adeus”
Será que depois nos encontramos
na terra linda onde são as coisas que não são
sem medo do fim?
Já moras, Pai, com o teu Cristo
o Cristo que nos salvou a todos
por termos alguém como tu.
Nunca te disse bem quanto te amava
como te amo muito dentro de mim
na terra linda onde são as coisas que não são
com tanto medo de as perder.
Estar a fazer a barba, cair
e partir para o outro lado
sem dizer tudo o que é preciso.
Ou como tu ficar assim à espera
suspenso de nada
à porta de Deus como um pedinte
pedinte de Deus
que só nos pediste que fôssemos melhores
e talvez por isso nos dás ainda mais uns minutos
da tua eternidade.
Vai agora, parte por favor
vai viver com as estrelas e com a alma das flores.
Sei que todos os dias continuarás a madrugar
para colher os odores mais puros.
Já não são precisos sacrifícios
aí é tudo dado num natal perpétuo e permanente.
Até nós te nos vamos dar
como tu te nos deste, como te entregaste cada dia
de manhã à noite
a Mãe
a Paula
o Ricardo
e eu
(por outra ordem espero que não esta
que eu não aguento mais)
vamos voltar a tocar-te o cabelo
o cabelo mais lindo que conheço
e a beijar-te
(como é possível que beijos tão a medo
como os teus quisessem sempre dizer tanto?).
E olha que se eu aí chegar
a essa terra que não mereço
é mesmo só por ti
é para te ver e ficar espantado
como só nos espantamos com os anjos.
Adeus Pai
tem calma.
Eu pensarei em ti todos os dias.
5
Tinhas-nos a nós
como nos querias
não como nós somos
Partiste
olhando o ar
pensando o Vago
escutando o Ser
na boca o Fluido
a essência do Sangue
nós
em tudo isso nós
o imenso Amor
Em que pensaste, Pai, nessa semana
em que soubeste tudo isso
que dizias há tanto
e que os homens procuram?
O teu olhar tão calmo
as tuas mãos
só diziam Amor
e a respiração era a de que ele é feito:
com a Mãe
sabe Deus e o vosso Amor quando
connosco
dia a dia e a desoras
com tanta gente
que eu nem adivinho
na mudez superior de quem é grande
Toda a vida
só fizeste Amor
Perdeste a Palavra e o Movimento
usa o meu corpo se isso for possível
Nunca será a mesma coisa
mas vou portar-me bem
(a gente cá sabe o que isto quer dizer)
Há que roubar as flores ao abandono
6
Guardo o brilho baço dos teus olhos
de seres inteiro em cada coisa
o Ritual dos dias conhecidos
e a alegria desentranhada
do fundo da eternidade
que é a bruma de Deus.
Guardo a entrega funda de saber
que a revolta não tem princípio nem fim
e aquela altivez tão especial inapercebida
que pode haver na submissão
de estarmos à frente dos homens e do tempo
viver como quem morre cada dia
e estarmos mortos como quem está vivo.
MIGUEL MARTINS
in «Seis poemas para uma morte», Fábrica das Letras
Encontrado aqui
de vez em quando venho aqui ler isto
ResponderEliminare fico sempre espantada pelo silêncio nesta caixa
olá Margarete,
ResponderEliminarAgora a caixa já não está silenciosa ;)