O Festival Mal Dito que está a decorrer em Coimbra desde 21 de Março e encerra hoje, nasceu da vontade de um grupo de amigos há um mês atrás, que sem apoios intitucionais se reuniram para concretizarem diversas acções em torno da poesia na cidade. Participei nele numa sessão intitulada "Olhos e Vozes" na Livraria/alfarrabista do Miguel de Carvalho, ao lado de José Geraldo e do professor Osvaldo Silvestre. Quando a Sandra Cruz me telefonou recentemente a convidar para fazer uma apresentação sobre a Poesia Experimental Portuguesa (1964-1974), respondi-lhe: O quê? Nessa cidade onde recentemente levei uma "facada"? É claro que vou!
Nem pensei duas vezes. Lá reencontrei a Sandra, o Manuel A. Domingos, a Maria Sousa, o Carlos Veríssimo, o Carlos Júlio do núcleo duro do evento. Aconteceram muitas coisas: homenagearam os poetas Rui Costa e Manuel António Pina, algo que não assisti infelizmente, porque estava na livraria a preparar a minha sessão, mas estão aqui as fotografias do Carlos Júlio, que registou o Isaque Ferreira a dar voz ao momento - que pena não terem som. Só à noite conheci o Isaque na sessão " Poetas não ditos" e tenho até dificuldade em descrever o momento: o Isaque trazia duas malas antigas e deu voz como ninguém a poetas pouco "ditos", trazia edições raras naquelas malas, alguns nomes conhecia como Isabel Meireles, Pedro Oom, João Habitualmente, Joaquim Castro Caldas, outros não os fixei, como um poeta que ele intitulou de punk e era totalmente a abrir, outros fixei o nome que desconhecia como Levi Condinho, o "beat" português de Alcobaça. E só pensava, a poesia portuguesa viaja naquelas malas e reencarna no Isaque com uma intensidade indescritivel. Mais tarde ele dizia-me, precisamos de poetas assim, que nos batam. Eles existem, e ainda bem que estão vivos na voz do Isaque.
No dia seguinte, tive o prazer de contemplar ao vivo as nuvens do céu de Coimbra, na janela da casa do meu anfitrião, enquanto ele me descrevia a construção dos vários prédios desde os anos 70 naquela mata: ali estava a prova de como o Portugal rural passou para o audiovisual sem nada pelo meio. Depois assiti a uma peculiar aula de "pusia" que a Sandra Cruz nos deu em sapatos pinky. No intervalo a Maria Sousa mostrou-me uma gravação da Irmã Lúcia a cantar, parece que saiu num CD aqui há uns anos atrás no Correio da Manhã, fiquei comovida, era o som da eterna infância, talvez o verdadeiro terceiro segredo de Fátima. Só a Maria sabe destas coisas. O Isaque nem queria acreditar naquela música infantil sobre pintainhos, acho mesmo que ia entrando em transe, só perguntava: ela disse BICO?
Depois reunimo-nos em torno da causa Angye Gaona, jornalista e poeta colombiana que neste momento se encontra na prisão e sem julgamento, acusada injustamente de tráfico de droga. O único crime que ela cometeu foi defender os presos políticos na Colombia. Miguel de Carvalho e Margarida Vale Gato leram os seus poemas, circulou uma carta para assinar e enviar aos magistrados daquele país. Seguiu-se uma sessão sobre poesia de intrevensão com Luís Quintais, Margarida Ferra e Margarida Vale de Gato. Ao meu lado, durante a sessão a Ana Salomé relatou-me factos sobre um passado recente e fomos reflectindo sobre como estaremos a ser silenciados agora, ou como nos poderão silenciar de futuro. Seguiu-se uma homenagem a Al Berto e apresentação do livro"Cronos decide morrer, leituras do tempo em Al Berto" de Golgona Anghel, com António Guerreiro, Diogo Vaz Pinto, David Teles Ribeiro e a autora do livro, no espaço peculiar e sempre acolhedor que é a livraria do Miguel de Carvalho. Depois, com muita pena, tive de voltar para Lisboa. No caminho pensava: em todos os eventos a que fui havia público. Existem pessoas vivas que se reunem para partilhar estas coisas que aparentemente não servem para nada. Ou se calhar são estes momentos que dão sentido à vida, porque é muito bom estarmos vivos assim. E tudo começou com um grupo de amigos que se reuniu em torno da poesia e organizou o Mal Dito em Coimbra num mês. Em tempos de crise, com o mundo como está, temos de nos reunir mais vezes nestas partilhas, o mundo necessita agora mais do que nunca. Temos de estar vivos.
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