O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Dia-a-dia #144


Da experiência de combate pela qual passei recentemente, falta apenas contar-vos a história da D. Vitória: era uma anciã que tinha algo da D. Secundina, do “ Mau Tempo no Canal” porque como diria Vitorino Nemésio “(…) a velha falava assim naturalmente, sem ódio nem queixas, como quem chama pelos verdadeiros nomes as espécies da fauna de um país de que é simples explorador e que está quase a largar.” Ela era de facto rija e horrível em simultâneo, não estava tão surda como o personagem e seria um pouco mais nova, rondava os oitenta anos. Eu simpatizei mal lhe ouvi os roncos peculiares que animavam a enfermaria. Das primeiras vezes que lhe ouvi a voz, estava já ela a mandar vir com o enfermeiro João, porque queria colocar a sua esquelética na boca. A primeira vez que me dirigiu a palavra foi bonito: eu estava a conversar com a Luísa, uma simpática enfermeira que ficou na cama ao lado da minha, internada de urgência e seria operada no dia seguinte. Trocávamos ideias sobre as experiências das anestesias e oiço assim muito alto: Olha! Esta não diz coisa com coisa. Como sabem, é difícil rir num pós-operatório, a D. Vitória era perigosa nesse sentido. Ela passava o tempo a mandar vir com o enfermeiro João que era um típico beirão, na casa dos quarenta anos, gorducho e entroncado, poucas falas e muito competente. Ela lá no fundo deveria de achar que aquilo não era sítio para homens e o desgraçado apanhava por tabela, mas o João era tão boa pessoa, que voltava costas, encolhia os ombros e ria-se. Se lhe traziam chá ela praguejava, dizia que não bebia aquela merd…, também não gostava de iogurtes, estava revoltada porque tinha trazido uma caixa com os seus medicamentos todos organizados e não lhos davam a horas. Depois, levantava-se da cama sozinha, não queria ajuda e arrancava com dores a quinta a fundo para a casa de banho, uma força da natureza. Uma das vezes tomou um pouco de chá com os comprimidos e vomitou. E lá apareceu o anjo de nome Clara, que a acalmou dizendo, tem toda a razão D. Vitória, eu é que a convenci a tomar chá, eu já não lhe trago mais. A Clara era assim, e depois limpou a porcaria toda. De seguida tentou animá-la: D. Vitória conte-nos lá, a suas amigas ainda não sabem que tem um pretendente lá no lar. A D. Vitória respondeu: é um velho de bengala, ele não tem piada nenhuma e outro dia quis roubar-me um beijo, mas ele mete-se com todas; eu fiquei viúva aos trinta e seis anos e nunca mais me interessei por essas coisas. Mas a situação mais cómica de todas foi quando o enfermeiro João se dirigiu a ela, com muito cuidado para lhe dizer que era necessário fazer um clister e depois saiu da enfermaria para ir buscar o material. A D. Vitória comentou bem alto: ENTÃO ESTE AGORA QUER IR-ME AO …?

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