O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

terça-feira, 30 de junho de 2009

Jardim #3

Isto de fazer obras no quintal está a dar muita merda, quer dizer, estou a descobrir coisas nojentas. Já aqui tinha referido que no rés-do-chão do meu prédio vivia lá uma velha que morreu (antes ela do que eu) à cerca de 3 anos e que a casa agora não se sabe de quem é, que consegui uma chave para ser feita a limpeza de uma suposta fossa. Bom, hoje fiquei a saber que não se trata de uma fossa, na entrada do quintal lá em baixo encontra-se sim uma tampa de esgoto, com ligação ao prédio ao lado, que tem ligação feita para os esgotos municipais. Mas à vinte anos que ouvia falar de uma fossa, que afinal não é, isto foi tudo visto pela minha irmã que que é arquitecta e os técnicos que vieram desentupir o assunto. Tomei coragem e fui à casa da velha: a pia de despejo que lá existe na marquise junto ao quintal estava a deitar merda para fora, os técnicos levantaram a tampa do esgoto que estava calcinada e aquilo não tinha descrição, estava entupido porque entre outras coisas, mandaram panos pelo cano. Sim, havia panos por lá, algo que entope qualquer caixa de esgoto. No último andar do meu prédio vive um casal com cerca de 80 anos, estou desconfiada que devem deitar tudo e mais alguma coisa para a pia. A senhora nunca sai de casa e o marido é muito estranho e está surdo que nem uma porta. Hoje de manhã vieram entregar no prédio os novos contentores para o lixo, para se fazer a reciclagem e o homem veio falar comigo, antes ainda do desentupimento lá em baixo, só se descartava, dizia que não queria saber do lixo e das novas regras para nada, que ele era ainda do tempo em que o lixo era recolhido numa carroça com um burro e que ia falar com o pessoal da câmara, ia lá mandar vir com isso. Não sei bem o que fazer em relação a este assunto, não sei como hei-de lidar com este vizinho.

Diário gráfico #30




Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Poema #12

VIVAM APENAS

Vivam, apenas
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes

Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.

Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.

E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.

Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!

José Gomes Ferreira

domingo, 28 de junho de 2009

Poema #11

TIA HELEN

Miss Helen Slingsby era a minha tia solteira
E morava numa casita à beira de uma praça elegante
Tratada por serviçais em número de quatro.
Ora, quando morreu, fez-se no céu um silêncio
E silêncio ao fundo da rua dela.
Correram as persianas, limpou os sapatos o cangalheiro –
Consciente de que tais coisas haviam já acontecido.
Na ração dada aos cães, foram generosos
Mas até o papagaio morreu em poucos dias.
Na prateleira do fogão, seguia o tiquetaque do relógio de Dresden,
E em cima da mesa de jantar sentava-se o lacaio
E apertava, nos joelhos, a criada de fora –
Sempre tão discreta, em vida da patroa.

T.S. Eliot (tradução de João Almeida Flor)


sábado, 27 de junho de 2009

Poema #10

OS MANEQUINS DE MUNIQUE

A perfeição é terrível, não pode ter filhos.
Fria como a respiração da neve, pões um tampão no útero

Onde os teixos sopram como hidras,
A árvore da vida e a árvore da vida

A libertar as suas luas, mês após mês, sem nenhum objectivo.
O fluxo do sangue é o fluxo do amor,

O sacrifício absoluto.
Quer dizer: não há outro ídolo senão eu,

Eu e tu.
Assim, no seu sulfuroso encanto, nos seus sorrisos

Estes manequins dormitam esta noite
Em Munique, a morgue que fica entre Paris e Roma,

Nus e carecas nos seus casacos de peles,
Chupa-chupas de laranja em pauzinhos de prata

Intoleráveis, ocas cabeças.
A neve deixa cair os seus bocados de escuridão,

Não se vê ninguém. Nos hotéis
Mãos estarão a pôr sapatos

À porta dos quartos para que os engraxem com carbono
Neles hão-de amanhã entrar enormes pés.

Ó a domesticidade destas montras,
As rendas de bebé, as folhas verdes de açúcar,

Alemães toscos a passar pelo sono metidos nos seus stolz largos.
E telefones pretos no descanso

A brilhar
A brilhar e a digerir

Emudecidos. A neve não tem voz.

Sylvia Plath (tradução de Maria Fernanda Borges)

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Sagração da Primavera


Em plena Av. da Liberdade, um socrático que vive permanentemente em performance, celebra a estação do renascimento dançando em frente a um painel publicitário rotativo; e sempre que surge a imagem de uma modelo feminina em lingerie, ele ri e lança os braços no ar, acenando as mãos com dois caralhinhos nos dedos.

Publicado na revista Minguante nº6

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Diário gráfico #29




Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Textos insones #16

Esculturas sonoras

São 8.45m da manhã, chego a horas como gosto quando marcam algum trabalho pago comigo. Digo pago comigo e até parece mentira, mas não é, uma amiga telefonou-me para eu dar respiração e voz a uma personagem num filme de animação; trata-se de um filme de autor (não posso dizer o nome, ainda não estreou), ao telefone ela contou-me que animou a personagem, mas não a criou, deu-lhe gestos a pensar nos meus, interpretou-a assim e por isso só eu poderei ser o seu som; a personagem é uma mulher obesa, neurótica, está sozinha a deambular na casa, fuma cigarros, tenta telefonar para um gajo, mas ele desliga-lhe o telefone na cara; o gajo também é obeso e têm um cão obeso, coisa politicamente correcta na realidade. Bom, aquilo é ficção, a personagem zanga-se com o telefone, toma comprimidos e atira-se pela janela, enquanto o gajo assiste a todo o drama num café em frente. Eu já fui obesa, mas não me mandei de nenhuma janela, nem me enfrasquei em comprimidos, mas isso de deambular pela casa sozinha sei bem o que é e desligarem-me o telefone na cara de propósito também. Já são 9.20m, é estranho, a minha amiga não é de atrasos, vou ter de lhe telefonar; afinal confundi tudo, foi marcado às 9.45m, percebi mal por causa da febre. Hoje acordei melhor, mas gripe de verão vai e vem, com a febre sonhei com uma exposição de escultura num jardim, onde participava com uma intervenção num tanque enorme cheio de água, colocava no meio dele um gradeamento em ferro trabalhado com formas diversas que se seguravam num tecto peculiar, uma espécie de telheiro do tanque onde tinha colocado cadeiras de cinema enfileiradas e outras suspensas em estruturas semelhantes ao gradeamento. Aponto esta imagem estranha no meu bloco quando aparece a minha amiga e o realizador acelerado; ela apresenta-mo outra vez, ele diz que se lembra perfeitamente mim à mais de um ano e que até a voz está diferente; e tem razão, respiro de outro modo, são menos 40kg, mas enquanto estava a gravar, lembrei-me do que já fui, lembrei-me bem do cansaço em me mover, o que é desistir de me vestir, ouvi o eco da minha antiga respiração na casa desarrumada da personagem; começamos a gravar timidamente, primeiro apenas a respiração que se tornava a pouco e pouco mais intensa, só os cigarros a acalmavam, depois foi surgindo um crescendo com a presença rítmica da respiração, criando uma espécie de texto que se sente e não se consegue ler. A voz só surgiu na parte da raiva com o telefone, não digo absolutamente nada em todo o filme, faço sim uns harmónico com enormes ressonâncias de peito, é tudo voz interior. O realizador acelerado exclamou: boa, é a voz da gaja? É claro que estava nos meus graves de peito, lá por ter menos mamas não deixei de saber quanto pesam aquelas mamas; sei também que ter mamas é ser confundida com a santa casa da misericórdia, é grave e dói, mas eu não sou aquela gorda que termina a mandar-se pela janela fora e à qual o gajo assiste ao desfecho com prazer sádico no café, como se estivesse a assistir a um programa na TV. Existem muitos humanos por aí que sofrem da doença da morte, já ouviram falar nisso? Apercebi-me da doença quando li os “Textos secretos” da Marguerite Duras, foi à vinte anos atrás, na altura cruzei-me com um gajo que sofria desse mal, a indiferença, ele pegou-me aquilo durante algum tempo, mas depois ofereci-lhe o livro no seu aniversário, mostrei-lhe a minha consciência; eu sei o que és e sobrevivi porque escrevo, esse é o meu antídoto contra a doença da morte, tenho alguma coisa dentro deste cérebro e não apenas massa cinzenta, foi assim que arrumei a casa, que ela entrou em obras e o meu corpo também, agora só falta o jardim. Eu nunca me enfrasquei em comprimidos, nem parti telefones, já me tentaram matar de várias formas, mas levanto-me, tomo banho, visto-me de forma elegante, crio impacto em quem me cruzo, provoco emoções e também as tenho, pinto, faço escultura, canto e estou muito viva. Esse gajo, a última vez que o encontrei na rua, tinha barriga e um ar acabado, perguntou-me o que fazia, respondi-lhe escultura nas Belas e ele a olhar o chão, queixou-se que tinha um trabalho monótono, trabalhava num jornal e não tive pena nenhuma dele, tenho mamas, mas não sou estúpida. Voltando ao realizador acelerado, ele brincou comigo, dizia que a gaja podia ser eu, disse-lhe que não, sofro de vertigens por isso nunca poderei mandar-me de uma janela; ele pergunta-me o que faço, respondo que sou artista e vou vivendo de biscates como este, já vamos na direcção do Multibanco para me pagar, boa, é uma pessoa séria que paga a horas, coisa rara e merece respeito. Ele pergunta-me há quantos anos estou assim, respondo quatro ou cinco. Falo-lhe da minha exposição de escultura na Eterno Retorno, ele comenta que é fora de mão e ninguém lá deve ir ver; o técnico de som diz que ouviu falar no espaço por causa dos concertos e que é capaz de passar por lá, ele é músico, parece autista, mas suponho que sabe ouvir. Despeço-me com vontade de rir, nem lhes contei que as esculturas estão na parede junto ao palco dos concertos na livraria. As minhas esculturas não são para ver, são para ouvir, por isso não vai mesmo ninguém vê-las, mas acredito que alguns vão gostar de as ouvir. Quanto ao filme, quando estrear aviso, é a minha melhor escultura sonora até ao momento, mesmo que não seja possível colocarem o meu nome no genérico.

Postado no Insónia a 23/6/2007, véspera do meu 38º aniversário, lembrei-me dele porque hoje faço 40 anos.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Uma casa no tempo #10

Pedras
 
A água corre na água dos meus pés caindo nas pedras; nas pedras da cidade circulo contigo na terra molhada; na terra molhada abrem-se as veias estreitas onde ouvimos a voz das pedras; a voz das pedras abraça as ruas em muralhas circulares; em muralhas circulares percorremos no escuro as calçadas onde a água corre na água; na água deambulamos rumo às ruas perdidas no tempo; no tempo as veias convergem para o umbigo no seu interior; no seu interior a cidade branca das muralhas vive a noite a chover; a chover nas calçadas ergueu-se uma casa com paredes no tempo; no tempo sinto o cheiro da terra que a água transformou em pedra no templo para onde convergem as ruas da cidade; da cidade digo tempo em forma de templo com o cheiro intenso da terra molhada; da terra molhada corre água que canta nas calçadas escuras; nas calçadas escuras corre o tempo que corre na água dos meus pés caindo nas pedras.
publicado na revista Umbigo nº23

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Poema #9


CONTRA AS MULHERES


Esforça, meu coração,
não te mates, se quiseres:
lembra-te que são mulheres.

Lembre-te que é por nascer
nenhuma que não errasse;
lembre-te que seu prazer,
por bondade e merecer,
não vi quem dele gostasse.
Pois não te dês à paixão;
toma prazer, se puderes:
lembre-te que são mulheres.

Descansa, triste, descansa,
que seus males são vinganças.
Tuas lágrimas amansa,
deixa-as às suas esperanças;
que pois nascem sem razão
nunca por ela lhe esperes:
lembre-te que são mulheres.

Tuas mui grandes firmezas,
tuas grandes perdições,
suas desleais acções,
causaram tuas tristezas.
Pois não te mates em vão,
que quanto mais as quiseres
verás que são as mulheres.

Que te presta padecer?
que te aproveita chorar?
pois nunca outras hão-de ser,
nem são nunca de mudar.
Deixa-as com sua nação;
seu bem nunca lho esperes:
lembre-te que são mulheres.

Não te mates cruamente
por quem fez tão grande errada;
que quem de si se não sente
por ti não te dará nada.
Vive lançando pregão,
por onde fores e vieres,
que são mulheres, mulheres.

Espanha foi já perdida
por le-Tabla uma vez,
e a Tróia destruída
por males que Helena fez.
Desabafa, coração,
vive, não te desesperes;
que o que fez pecar Adão
foi a mãe destas mulheres.




domingo, 21 de junho de 2009

Diário gráfico #28





Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

sábado, 20 de junho de 2009

Poema #8

AS COISAS

A bengala, as moedas, o chaveiro,
a dócil fechadura, essas tardias
notas que não lerão meus poucos dias
que restam, o baralho e o tabuleiro,
um livro e dentro dele a esmagada
violeta, monumento de uma tarde
por certo inolvidável e olvidada,
o rubro espelho ocidental em que arde
uma ilusória aurora. Quantas coisas,
limas, umbrais, atlas, copos, cravos,
nos servem como tácitos escravos
cegas e estranhamente sigilosas!
Durarão para além do nosso olvido
e nunca saberão que já nos fomos.

Jorge Luís Borges (tradução de Maria da Piedade M. Ferreira)

sexta-feira, 19 de junho de 2009

Diário gráfico #28




Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

Poema #7

O SOL DA TARDE

Este quarto, como o conheço bem.
Agora alugam-se quer este quer o do lado
para escritórios comerciais. A casa toda tornou-se
escritórios de intermediários, e de comerciantes, e Sociedades.

Ah este quarto, não é nada estranho.

Perto da porta por aqui estava o sofá,
e diante dele um tapete turco;
ao pé a prateleira com duas jarras amarelas.
À direita; não, em frente, um armário com espelho.
Ao meio a sua mesa de escrever;
e três grandes cadeiras de vime.
Ao lado da janela estava a cama
onde nos amámos tantas vezes.

Estarão ainda os coitados nalgum lugar.

Ao lado da janela estava a cama;
o sol da tarde chegava-lhe até metade.

…De tarde quatro horas, tínhamo-nos separado
por uma semana só…Ai de mim,
aquela semana tornou-se para sempre.

Konstandinos Kavafis (tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis)

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Diário gráfico #27




Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

Poema #6

CARTA DA INFÂNCIA

Amigo Luar:

Estou fechado no quarto escuro
e tenho chorado muito.
Quando choro lá fora
ainda posso ver as lágrimas caírem na palma das
minhas mãos e brincar com elas ao orvalho
nas flores pela manhã.
Mas aqui é tudo por demais escuro
Lembro-me das noites em que me fazem deitar tão
cedo e te oiço bater, chamar e bater, na fresta
da minha janela.
Pelo muito que te tenho perdido enquanto durmo
vem agora,
no bico dos pés
para que eles te não sintam lá dentro,
brincar comigo aos presos no segredo
quando se abre a porta de ferro e a luz diz:
bons dias, amigo.

Carlos de Oliveira

quarta-feira, 17 de junho de 2009

No fio de Ariadne #5


Postado no Insónia a 12/2/2008, para ver em promenor clique na imagem.

Jardim #2

Porra! Porque é que existem vizinhos? Porque é que a estupidez na espécie humana é infinita? Só quero construir um jardim, ainda agora comecei e já estou farta das desconfianças, dos olhinhos, de perguntinhas com segundas intenções, de cravansos e empata fodas. Costumo ser diplomata, mas se já dormi mal hoje depois de ouvir coisas tão absurdas ontem, estou com sapos no estômago por fazer de conta que nada tem importância para levar a minha avante, sinto que isto vai descambar, vai- me saltar a tampa. A propósito de tampa, existe uma fossa no meu prédio que não é limpa à três anos, porque está no quintal do rés-do-chão, onde vivia uma velha que morreu (antes ela do que eu). A senhora não tinha descendentes, dizem que deixou a casa à Igreja da terra dela, mas um afilhado tem um processo em tribunal a reivindicá-la, resumindo, aquela casa agora não é de ninguém. Entretanto, depois de telefonemas, de falar com diversas pessoas em que cada um tem uma história diferente para contar, consegui falar com alguém que tem a chave daquele antro fechado desde a morte da velha, para haver acesso à fossa por parte do pessoal que lá for limpar. Telefono para a câmara, dizem que alguém tem de levantar a tampa da fossa. A casa de banho da velha junto ao quintal está a deitar água para fora, vê-se através do gradeamento da porta e é um pivete insuportável. Quando levantarem a tampa, vai haver uma inundação de merda nos quintais.

Poema #5

IMPOSSÍVEL

Nós podemos viver alegremente,
Sem que venham com fórmulas legais,
Unir as nossas mãos, eternamente,
As mãos sacerdotais.

Eu posso ver os ombros teus desnudos,
Palpá-los, contemplar-lhes a brancura,
E até beijar teus olhos tão ramudos,
Cor de azeitona escura.

Eu posso, se quiser, cheio de manha,
Sondar, quando vestida, pra dar fé,
A tua camisinha de bretanha,
Ornada de crochet.

Posso sentir-te em fogo, escandescida,
De faces cor-de-rosa e vermelhão,
Junto a mim, com langor, entredormida,
Nas noites de verão.

Eu posso, com valor que nada teme,
Contigo preparar lautos festins,
E ajudar-te a fazer o leite-creme,
E os mélicos pudins.

Eu tudo posso dar-te, tudo, tudo,
Dar-te a vida, o calor, dar-te cognac,
Hinos de amor, vestidos de veludo,
E botas de duraque

E até posso com ar de rei, que o sou!
Dar-te cautelas brancas, minha rola,
Da grande loteria que passou,
Da boa, da espanhola,

Já vês, pois, que podemos viver juntos,
Nos mesmos aposentos confortáveis,
Comer dos mesmos bolos e presuntos,
E rir dos miseráveis.

Nós podemos, nós dois, por nossa sina,
Quando o Sol é mais rúbido e escarlate,
Beber na mesma chávena da China,
O nosso chocolate.

E podemos até, noites amadas!
Dormir juntos dum modo galhofeiro,
Com as nossas cabeças repousadas,
No mesmo travesseiro.

Posso ser teu amigo até à morte,
Sumamente amigo! Mas por lei,
Ligar a minha sorte à tua sorte,
Eu nunca poderei!

Eu posso amar-te como o Dante amou,
Seguir-te sempre como a luz ao raio,
Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou,
Lá essa é que eu não caio!

Cesário Verde

terça-feira, 16 de junho de 2009

Diário gráfico #26





Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

Poema #4

UMA PROSA SOBRE OS MEUS GATOS

Perguntaram-me um dia destes
ao telefone
por que não escrevia
poesia (ao menos um poema)
sobre os meus gatos;
mas quem se interessaria
pelos meus gatos,
cuja única evidencia
é serem meus (digamos assim)
e serem gatos
(coisa vasta, mas acontece
a todos os da sua espécie)?
Este poderia
(talvez) ser um tema
(talvez até um tema nobre),
Mas um tema não chega para um poema
nem sequer para um poema sobre;
porque é o poema o tema,
forma apenas.
Depois, os meus gatos
escapam demais à poesia
ou de menos, o que vai dar ao mesmo,
são muito longe
ou muito perto,
e o poema precisa de tempo certo
de onde possa, como o gato, dar o salto;
o poema que fizesse
faria deles gatos abstractos,
literários, gatos-palavras,
desprezível comércio de que não me orgulharia
(embora a eles tanto lhes desse).
Por fim, não existem «os meus gatos»
existem uns tantos gatos-gatos,
um gato, outro gato, outro gato,
que por um expediente singular
(que, aliás, também absolutamente lhes desinteressa)
me é dado nomear e adjectivar,
isto é, ocultar,
tendo assim uns gatos em minha casa
e outros na minha cabeça.
Ora só os da cabeça alcançaria
(se alcançasse) o duvidoso processo da poesia.
Fiquei-me por isso por uma prosa,
E mesmo assim excessivamente corrida e judiciosa.

Manuel António Pina

segunda-feira, 15 de junho de 2009

Dia-a-dia #12

Conheci recentemente a poeta alemã Barbara Köhler, na apresentação do livro VERSschmuggel/ Contrabando de VERSOS no Goethe-Institut em Lisboa. A Barbara entusiasmou-se com o meu trabalho ao visitar a minha exposição, de tal forma, que lhe propus trocar uma escultura por uma fotografia dela. E assim foi, ela levou uma pequena Babilónia para a Alemanha, é mais pequena do que está aqui fotografada, chamou-lhe Babel-baby e escreveu-me a anunciar que habita agora na cozinha da sua casa, ao lado de outros objectos artísticos, junto uma janela bem iluminada – está num sitio caloroso. Hoje estou muito feliz porque recebi a sua fotografia pelo correio, vou colocá-la na parede em frente à minha cama, para ser uma das primeiras coisas que vejo quando me levanto. Deixo-vos aqui também um poema da autora.









fermata

uma paragem uma para

gem por dentro um não

saber como fazer e não

querer no silêncio cai

um som solta-se o destino

do gesto nasce em ondas

a memória do toque

esticadas as cordas os arcos a pele

um som

dado como

perdido


Barbara Köhler (tradução de Ana Paula Tavares) in VERSschmuggel/ Contrabando de VERSOS, Wunderhorn/ Editora 34/Sextante Editora/Literaturwerkstatt Berlin, 2009

Poema #3

Busque o Amor novas artes, novo engenho,
para matar-me, e novas esquivanças;
que não pode tirar-me as esperanças,
que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, conquanto não pode haver desgosto
onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê.

Que dias há que n’alma me tem posto
um não sei quê, que nasce não sei onde,
vem não sei como, e dói não sei porquê.

Luís de Camões

domingo, 14 de junho de 2009

Poema #2

DOIS CIPRESTES

O que foi atado
na Terra
continua atado
no Céu
e o que foi desatado
na Terra
continua desatado
no Céu
(no Inferno
é ao contrário)
mas o que não chegou
a ser atado na Terra?
Penso em ti
meu marido
não vivemos
no mesmo século
nem na mesma cidade
nunca nos cruzámos
porque não pudemos
procurámo-nos
um ao outro
lavados em lágrimas
a ver os outros
namorarem-se
às três pancadas
eu li o Yoga para grávidas
e o Vou ter um bebé
eram ficção científica
que eu mais apreciava
não aceitei o bolo
em forma de coração
que os rapazes
dão às raparigas
no Tirol
até porque não mo deram
as nossas mãos
no escuro do cinema
e no escuro da noite
não eram para ser
partilhadas
imagino-te morto
cheio de sex-appeal
e eu viva
sem sex-appeal nenhum
um dia morro
como tu
a vida não era isto
nós sabíamos
no Céu há muitas moradas
(para nós um duplex certamente)

Adília Lopes

sábado, 13 de junho de 2009

Diário gráfico #25




Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

Poema #1

A FLOR TEM LINGUAGEM DE QUE A SUA SEMENTE NÃO FALA

A flor tem linguagem de que a sua semente não fala
A raiz não parece dar aquele fruto
Não parece que a flor e a semente sejam da mesma linguagem
Retirada a linguagem
A semente é igual a flor
A flor igual a fruto
Fruto igual a semente
Destino igual a devir.
E era o que se pedia: igual.

sexta-feira, 12 de junho de 2009

Diário gráfico #24




Mais páginas do diário que fiz em 1994 durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Música veranil #1

<>
O verão ainda não começou oficialmente, mas já se sente no ar por isso aqui coloco os ceifeiros de Cuba a cantarem a terra sagrada do pão, entre copos de tinto.

terça-feira, 9 de junho de 2009

Azulando

I - Céu

Nas Belas-artes, um Orgasmos Ferrari como os carros, mas devido ao arroz com a mesma marca no norte de Itália, disse-me que o céu de Lisboa é sempre azul, até de noite. Nunca tinha reparado nisso, mas também de noite todos os gatos são pardos.

II - Gelo

No Canadá apercebi-me que o gelo é azul e queima, fartei-me de cair nas ruas de Halifax, quando ia a caminho da câmara escura; queria fazer fotogramas a preto e branco, mas os números colocados no ampliador estavam errados, então ficaram a azul e branco.

III - Rigor

Ao meu lado trabalhava um fotógrafo de límpidos olhos azuis-claros; oriundo do norte da Nova Escócia, ele estava a revelar fotografias tiradas no ano anterior em Nova Iorque, onde passeou nas ruas como um
cowboy, disparando com a máquina fotográfica junto ao bolso das calças.

IV - Olhar

O fotógrafo canadiano tinha o olhar azul mais rigoroso que conheci; ele fez uma versão do livro
Les Americande Robert Frank (conhecido fotógrafo americano residente na Nova Escócia) chamando-lhe The Americans: com o photoshop apagou todos os americanos das fotografias, resumindo-as a espaços vazios.

V - Silêncio

Conheço um escultor americano que ensurdeceu, por isso os lábios e as mãos das suas esculturas cresceram. Ele confessou-me que Mozart ocupa um espaço especial no seu quase-silêncio, agora só ouve interiormente; e ensinou-me que nos gestos surdos-mudos, azul e céu fundem-se num só.

VI - Lua

O azul é a cor dos rapazes, mas a lua tem os olhos azuis como qualquer siamesa de categoria. Em inglês, lua não tem sexo, é simplesmente
the moon, ou seja, um anjo nocturno, azul e brilhante; mas isso são coisas do norte do planeta.

VII - Anjo

Cruzei-me com um gato vadio e não reparei logo no seu azul nocturno. O mesmo aconteceu com o céu de Lisboa, mas também de noite todos os gatos são pardos.


Hoje lembrei-me destas micros que estão no nº2 da Miguante dedicada ao azul, mas retirei a palavra azul dos títulos porque já existia o azulando.

Diário gráfico #23




Mais páginas do diário que fiz em 1994 , durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

No fio de Ariadne #4






Da cidade, aguarela s/papel, 21x30cm, 2008

Postado no Insónia a 26/3/2008 e publicado na Revista Big Ode#4 - Urbe, Março-Junho de 2008, clique na imagem para ler.

Textos insones #15

Limpar o pó

Contrataram-me para um evento especial num museu – isto de viver de biscates tem que se lhe diga, pelo menos vai variando; e lá fui trajada a rigor – brincos antigos de esmalte e ouro (prenda da família), saia de bom tecido, sapatos clássicos, encharpe de seda . Deparei-me então com um director que nada tinha a ver com o meu contrato e vi logo que ele era do tipo que não gosta de mulheres – já os topo pelo cheiro à distância. O dito cujo não gostou do meu saco de tecido indiano – onde transportava o cofre do dinheiro para os pagamentos, entre outras responsabilidades do evento; e não sei porquê, ele decidiu mandar-me limpar o pó das cadeiras onde as pessoas se iam sentar, entregando-me um pano com ar de nojo; calmamente, eu limpei o pó com uma classe que ele desconhece e logo a seguir levou comigo: chegaram as funcionárias do museu que me tiraram o pano das mãos, dizendo que eu não tinha que fazer aquilo. E ele que estava de braços cruzados a arrotar postas de pescada sobre a melhor disposição do material teve de me aturar a colocar ordem nos assuntos em termos práticos e sempre ao contrário das suas ordens, perante a satisfação das funcionárias. Durante o evento fui apresentada oficialmente à criatura, afirmando logo que já nos conhecíamos e ainda aproveitei para o fazer estremecer, publicamente, mais um pouco e com subtileza, porque eu limpo o pó como bebo chá ou descasco cenouras, é tudo igual.

Postado no Insónia a 27/9/2007

domingo, 7 de junho de 2009

Artes #3




Banksy "penetrou" a secção da Pop-art do Museu Ludwig em Colónia no dia 28 de Outubro de 2008 às 16h da tarde.

sábado, 6 de junho de 2009

As cinco vésperas de Salvador


I - Baptizado

Nas vésperas do seu baptizado, Salvador provou pela primeira vez a sensação de estar dentro de um fato de cerimónia; tratava-se de um vestido de seda branco com mais de um século, já usado pelos seus antepassados. Salvador sentiu-se desconfortável e apertado, por isso chorou, gritou e bolçou sobre as rendas de Bruxelas da touca, que nunca chegou a usar.

II - Comunhão

Nas vésperas da primeira comunhão, Salvador revoltado e de braços cruzados afirmou a pés juntos que não queria falar com o padre, porque não tinha pecados a confessar.

III - Serviço Militar

Nas vésperas de cumprir o serviço militar, ou seja, no dia da inspecção, Salvador foi dado como inapto, devido às medidas do seu corpo ultrapassarem largamente os padrões previstos no fabrico das fardas e botas de tropa.

IV - Casamento

Nas vésperas do casamento, a mãe do Salvador recomendou-lhe que mandasse fazer um bom fato escuro para a cerimónia, dos que duram a vida inteira. Salvador achava que era melhor comprar um fato preto, porque assim também o poderia usar nos funerais. A sua mãe disse-lhe que não queria ninguém vestido de preto no dia do seu funeral.

V - Funeral

Nas vésperas da sua morte, Salvador avisou a família de que o poderiam vestir, finalmente, com o seu melhor fato preto, aquele que teve de usar em todas as cerimónias importantes e oficiais na sua vida adulta.

Hoje lembrei-me destas micros que estão no nº1 da Minguante dedicado ao Banal

Diário gráfico #22




Mais páginas do diário que fiz em 1994 , durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

sexta-feira, 5 de junho de 2009

Dia-a-dia #11

Hoje o dia foi do pior: choveu de manhã por isso não foi impossível começar a limpar o quintal, o computador avariou, mas à tarde descobri com o técnico que afinal foi o teclado que foi à vida, do mal o menos, por fim fui comprar material e dei cabo das costas a carregar um saco de areia. Tudo ao contrário, como diz a filha de uns amigos meus, o mundo não é como tu queres. O que vale é que a minha irmã comprou um gelado de chocolate, está ali no congelador, vou desforrar-me.

quinta-feira, 4 de junho de 2009

Diário gráfico #21




Mais páginas do diário que fiz em 1994 , durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.

Leituras #16

O primeiro romance do meu amigo foi lançado ontem e é a história de um livro escrito por uma freira portuguesa e dos seus 333 exemplares impressos em Milão, do impacto que esses exemplares tiveram na vida dos seus leitores; o romance é assim composto por um conjunto de microficções em torno do destino de cada um destes 333 exemplares. Escolhi uma destas peculiares microficções para partilhar convosco, alguns leitores da casa no tempo ficarão surpreendidos:

“Maria Fernandez comprara o seu exemplar em Évora e decidira fazer uma escultura com as frases: um edifício de sentido onde por todas as frases das Cartas brilhassem, continuassem e se repetissem com o sol, bem como pelo olhar de quem as contemplasse. «O sentido é uma casa interior», dizia sempre. Os seus contemporâneos admiravam as suas ideias mas consideravam a sua arte muito estranha e perturbadora; Maria continuava, esculpindo o universo todo que existia no que ainda não tinha sido. Mas arruinou-se o livro quando um pouco de tinta dourada caiu sobre ele, e consciente dos processos que o universo usa com o homem, transformou o livro em uma das esculturas.”

In Pedro Sena-Lino, 333, Porto Editora, p-62

quarta-feira, 3 de junho de 2009

Textos Insones #14

Ruínas

Os quintais da vizinhança, entre os quais está um pequeno pedaço que aparentemente me pertence, vivem o abandono total; a velha do rés-do-chão morreu e aquilo agora é uma verdadeira selva, a trepadeira invade-me a janela do atelier, por vezes tenho de cortá-la para não tapar a luz, para não interferir na luz necessária para pintar; há muito que prometi construir um jardim naquele pedaço, não o fiz, sei agora que nada me pertence e estou de passagem, mesmo quando circulo no mesmo sítio. Cada dia sinto mais que estou de partida, o que me prende é nada e a ideia de construir um jardim não passa de uma boa ideia. Estou triste, nem escrevo, resta-me alguma energia para pintar, procuro outros mundos onde possa habitar, porque o que se passa em meu redor está a perder o sentido. Não entendo quando comecei a sentir-me assim, talvez desde que a pintura me invadiu, ela está a interferir em tudo. Acordo por vezes de madrugada, sem despertador e vou pintar, nunca pensei que a luz da manhã se tornasse tão importante. A Lua segue-me com o seu precioso silêncio. Estive anos enleada e agora preencho espaços com rastros labirínticos, à medida que me liberto apenas me distancio, é como se tudo em meu redor fossem apenas memórias, vidas onde já não estou no momento presente, vidas que não me dizem respeito. Retomei o trabalho e as actividades sociais habituais no início de Setembro, não me preenchem, faço apenas o que pode ser feito para depois poder pintar. Nada me encanta. Sinto que em torno de mim habitam três ruínas que se estão a desmoronar: tentei que duas delas se fortalecessem contra as agressões do meio ambiente, mas não consegui nada, elas agora estão a destruírem-se uma à outra. Quanto à terceira, é muito bela, mas está fechada, queixa-se que eu não faço a mínima ideia do que se passa com o seu corpo e alma. Não me sinto culpada por isso, não sou responsável por uma ruína invisível fechada sobre si própria, não vou arruinar-me por algo que me é exterior, já quase me desmoronei por outras razões, mas depois das obras na casa, sinto que vou ter de habitar outro espaço. Não consegui sequer construir um jardim nos quintais da vizinhança, confesso que me atrai ver aquele pequeno mato no centro da cidade, o jardim era uma boa ideia, mas não o vou construir aqui. Não consigo fazer quase nada onde estou, apenas exorcizar enleios nas telas, vou libertar-me apenas.

Postado no Insónia a 25/9/2008, lembrei-me desta coisa deprimente porque o quintal vai ser limpo a partir de sexta-feira, finalmente, aquela selva vai desaparecer, não sei se consigo criar um jardim por lá, a ver vamos.

Diário gráfico #20







Mais páginas do diário que fiz em 1994 , durante a minha estadia em Halifax (Canadá), para ver em promenor clique nas imagens.