O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Textos insones #20


Num post anterior abordei as questões que Christian Boltanski formula através da sua actividade artística, ao penetrar na esfera privada das memórias históricas e colectivas, nomeadamente, se cada ser humano poderá ser um potencial criminoso. O artista ao colocar esta questão sabe que vive num mundo onde já não se acredita numa humanidade melhor, onde as utopias políticas morreram e apresenta-nos as utopias de aproximação como uma possível esperança: não podemos mudar o mundo, mas podemos reagir à nossa volta, aí sem ir mais longe. A questão que vou colocar agora é também um pouco dolorosa: será que o acesso ao conhecimento, à arte e à cultura poderá tornar os seres humanos melhores? Sem dúvida que quem tem acesso à cultura é mais consciente e terá mais responsabilidades perante o mundo; mas será que alguém é melhor só porque é culto e sapiente? Um criminoso não poderá ser também culto e sapiente? Christian Boltanski questiona-se e questiona-nos ao inventariar e mostrar fotografias da vida familiar dos SS. Eu coloco-vos esta questão a partir de um facto histórico sobre o qual diversos autores reflectiram com seriedade, porque por mais que se questione, talvez não haja nenhuma justificação para ele. A pergunta é: como foi possível a presença da música nos campos de concentração?
Na realidade, os SS para além de terem afectos, também amavam a música. Michel Schneider aborda este tema em “Musique de Nuit” - Editions Odile, Paris – livro que dedicou a Alma Rosé, sobrinha de Gustav Mahler, que dirigiu uma orquestra feminina em Birkenau e morreu em Auschwitz em 1944. No livro relata-nos que Alma Rosé foi descrita por um sobrevivente do Holocausto, como alguém que não vivia neste mundo, que criou uma orquestra composta por raparigas que tocavam apenas há dois ou três anos e davam concertos todos os Domingos; o nível de qualidade da sua orquestra melhorou de dia para dia, segundo o depoimento, porque Alma Rosé vivia numa espécie de transe musical, trabalhando obsessivamente, tentando assim ignorar o que se passava à sua volta, mas sofria de insónias à noite. Será que Alma Rosé que a música poderia tornar os seres humanos melhores, mesmo aqueles monstros no campo de concentração? Será que a sua obsessão em trabalhar com a orquestra de forma a melhorar a qualidade dos concertos, era um acto de sobrevivência ou de fé? Nunca o saberemos; sabemos apenas que se algum SS se ria ou fazia um julgamento durante uma actuação, ela parava a música, dizendo que não se podia tocar naquelas condições e nunca foi punida por isso. O comandante deste campo de concentração, Josef Kramer, era um grande amante de música, tocava piano e o seu compositor favorito era Schumann. Sabe-se também que o Dr. Mengele era um profundo melómano, apesar das atrocidades que cometeu. Em Auschwitz, as autoridades ofereciam música de câmara, Jazz, de variedades e aos domingos à tarde havia concertos com aberturas de operetas e música ligeira, como se o campo de concentração fosse uma vulgar vila alemã. A música era interpretada por uma orquestra de prisioneiros, dirigida por Simon Laks, músico polaco que sobreviveu ao holocausto e publicou as suas memórias em 1948. Simon Laks começou por ser violinista nesta orquestra, depois copista de partituras e finalmente maestro. Segundo Michel Schneider, Simon Laks teve de inventar orquestrações especiais para que fosse possível tocar qualquer peça, apesar das ausências na orquestra, nas partituras existiam assim as notas dos temas mais importantes dos solistas. Os músicos também morreram em Auschwitz, poderiam sobreviver mais tempo que os outros prisioneiros, mas também morriam. Os outros artistas ou os poetas não tinham a mesma sorte que os músicos. A música é da ordem do invisível, a arte mais imaterial e espiritual de todas, uma linguagem universal que invade e atravessa os corpos dos seres humanos, instalando-se na intimidade, uma linguagem abstracta onde apenas os títulos são portadores de conteúdo, não os sons, e que não possui referente na realidade; talvez por isso, a música é a arte que mais se aproxima do bem, da justiça ou da verdade. Então, como foi possível a música estar presente nos campos da morte? Porque é que foi a única expressão artística no meio do horror? Como foi possível Josef Kramer, em Birknau, matar dezenas de pessoas num dia e tocar Schumann no piano a seguir? Poderá qualquer amante de música ser um criminoso?

Hoje lembrei-me deste texto postado no Insónia na 23/1/2007. Na fotografia podemos ver Alma Rosé.

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