O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Textos insones #21






BERLIM

A semana passada tive o prazer de receber em minha casa o poeta alemão Daniel Falb e a sua namorada Lina Maria, dois seres extraordinários – a Lua também simpatizou com eles, brincava muito com a Lina, percebeu logo que ela era malandra, como é meio italiana, mas também saltava para o colo do Daniel e dava-lhe dentadinhas nas mãos. Eles vivem em Berlim, cidade que me desperta muita curiosidade. A Lina estava encantada com a luz de Lisboa, transbordava energia. O Daniel é mais reservado, mas a pouco e pouco foi revelando algumas coisas: com apenas 31 anos, escreveu uma tese sobre Espinosa, agora prepara o doutoramento, conversamos e ouvimos também música, ele estudou piano até aos 23 anos; e tem um sentido de humor muito subtil – coisa rara nos alemães, pelo menos nos que conheci até agora. Relatei-lhe algumas das minhas aventuras em terras germânicas, que já estive para conhecer Berlim, mas não consegui. Na primeira viajem que fiz à Alemanha, fui visitar uma amiga portuguesa que estava a fazer um doutoramento em vinhos e vivia na altura no Vale do Reno, tinha em vista ir à capital, mas queria sobretudo ir a Postdam, porque existe lá um Caravaggio para ver ao vivo. Então, fomos de carro até Hanoover, visitar uns amigos meio alemães, meio brasileiros, com a ideia de continuarmos até Berlim, só que surgiu algo no caminho: uma festa de anos em Wolkesburg, de um alemão que tinha crescido no Brasil e agora trabalhava na fábrica da Wolkswagen. Wolkesburg foi no passado propriedade de um aristocrata que Hitler tratou de expropriar para construir a fábrica de automóveis e continua a ser a central de produção destas máquinas. Quanto à festa, foi indescritível: recordo entrar numa sala e ficar cheia de medo, estava apinhada de operários da fábrica a ouvir heavy-metal altíssimo, com umas mulheres extraordinárias, a beberem schnaps e cerveja, fiquei em pânico, ainda por cima tudo em alemão e eu era a única que não sabia aquela língua de bárbaros. O menu eram salsichas com salada de batata e maionese, típico, servida pela bizarra mãe do aniversariante, que tinha uma cadela muito velha e gorda sempre a segui-la. O aniversariante estava deprimido porque tinha batido com o carro numa árvore centenária, que era monumento nacional e tinha de pagar uma enorme multa por isso. No entanto, fui salva deste ambiente por um amigo de infância do aniversariante, um alemão que falava fluentemente português, estudante de literatura em Hamburg, com o qual tive um intenso diálogo sobre Fernando Pessoa e os seus heterónimos. O Daniel Falb comentou logo que tudo isto se relacionava com o meu desejo de ver o Caravaggio ao vivo e que já tinha estado em Wolkesburg, infelizmente, para um acontecimento cultural de outra ordem. Contei-lhe então que visitei também Heidelberg, mas não tinha percorrido o passeio dos filósofos ao pé do rio e que no caminho de volta para o Vale do Reno, me tinha enganado nos comboios, porque a estação de Mainz estava em obras, perdendo-me de tal forma, que fui parar a uma estação de noite no meio do nada e tive de telefonar para me irem buscar. O Daniel comentou que o passeio dos filósofos é semelhante ao que me aconteceu nos comboios e desafiou-me a voltar à Alemanha para resolver tudo isto, ofereceu-se ainda para ir comigo ver o Caravaggio ao vivo, porque nunca o viu, nem sabia que estava em Postdam. Assim que for possível, vou a Berlim visitar estes meus novos amigos.

texto postado no insónia a 16/10/2008, lembrei-me dele porque foi escrito na altura em que conheci Daniel Falb, antes de ilustrar os seus poemas que aqui tenho mostrado. As imagens que aqui estão datam de 1998, tiradas na primeira viagem que fiz à Alemanha. A primeira é uma panorâmica da festa em Wolkesburg, só falta o heavy-metal - o único rapaz de cabelo curto era o estudante de literatura portuguesa com o qual conversei animadamente sobre Fernando Pessoa. Ao lado está a mãe do aniversariante, autora da refeição alemã da festa, é pena não tirado uma foto à cadela, que também tinha uma fisionomia peculiar. Por fim, um passeio bucólico na floresta, efectuado no dia a seguir à festa, onde estou a conversar com o aniversariante.

6 comentários:

  1. Divirto-me, isto é, tenho um prazer alegre em ler estes seus textos, que primam por uma franqueza igualmente alegre nas descrições que faz, com passagens desconcertantes, inesperadas e muitas vezes divertidas, pelo menos do lado de quem lê. Não se vê nelas sombra de quererem ser literatura. Talvez também por isso o sejam.

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  2. Obrigada nd, de facto isto não é literatura, são apenas apontamentos que tiro quando não estou a fazer bonecos ;)

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  3. De facto é literatura, precisamente por não querer sê-lo, como confessa :)

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  4. Bem, para ser literatura eu tinha de me tornar uma corredora de fundo, algo que é impossível porque já tenho as artes plásticas para isso, algo que me absorve muito. Nisto, faço umas corridinhas :), nem é preciso ficçionar, limito-me a descrever situações, tenho o hábito de as apontar porque acho que a realidade está muito à frente da ficção.

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  5. Olá Francisco, sabia que ias gostar de ver as provas do crime :)
    bjs

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