O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Textos insones #22

Germanwings


Voei para a Alemanha pela terceira vez, mais uma na germanwings, companhia aérea com sede em Colónia que tem uns preços inacreditáveis; nestes aviões os lugares não são marcados e é bonito observar os alemães que normalmente são arrumadinhos a acotovelarem-se para chegarem a tempo de se sentarem à janela; os alemães em férias são assim, a procura do melhor lugar com vista para as nuvens é a oportunidade anual de terem sexo e em Colónia um romeno ensinou-me que a palavra foder em alemão também significa voar – o Platão tem dedo nisto de certeza e eu não consegui fixar a palavra em alemão para foda, talvez por falta de interesse, desmemória ou estupidez. Desta vez fui à Alemanha ao casamento de uma amiga portuguesa com um alemão, ela já vive naquelas terras há catorze anos; não entendo porque é que as pessoas casam, acho o casamento um gueto de comodismo e entre uma portuguesa e um alemão é já um clássico – parece que ao contrário não resulta, as alemãs não querem casar, nem estão para aturar os portugueses. Quanto aos alemães, tenho a impressão de que quase todos sonham em arranjar uma portuguesinha para os servir, para subjugarem, porque as empregadas domésticas na Alemanha há décadas que são portuguesas; é verdade, eles têm essa ideia fixa que as portuguesinhas ainda cuidam deles, são boas domésticas, umas fadas do lar, sentem-se infelizes e desamparados com as mulheres rijas da sua própria nacionalidade, que se emanciparam há muito, bem antes das portuguesas, são independentes e não estão para os aturar. O caso da minha amiga não é assim, ela é uma mulher de negócios e o seu alemão nasceu em Portugal, viveu em França durante muitos anos e para além de falar fluentemente várias línguas parece latino. Eles vivem em Colónia que é uma cidade multicultural onde os alemães até falam inglês e são simpáticos, têm fama de gostarem de farra naquela cidade. A minha amiga vive entre duas culturas e tenho receio que o casamento a torne definitivamente alemã, de forma legal visto que também vai ter um filho alemão; e o alemão dela, apesar de parecer latino é um alemão. Na última vez que os visitei apresentaram-me um galerista que me relatou a sua paixão pela caça, foi engraçado, ele tinha uma propriedade onde organizava caçadas a javalis e depois vendia a carne dos bichos, era um modo de fazer dinheiro também, possivelmente, para apoiar artistas novos na sua galeria. A caça para ele era a única actividade onde estava concentrado sem pensar em mais nada, onde se desligava do quotidiano. Não quis saber das caçadas do dito cujo e expliquei-lhe que a única actividade onde me sentia noutra dimensão é a música, mas interpretar música de câmara é algo pacificador que nada tem de violento. Desta vez apercebi-me que o grande Reno é o pai de todos os alemães e nas suas margens vislumbrei uma Valquíria: estava sentada numa estação de serviço, na esplanada do café. Ela vestia-se de cabedal negro, era alta com porte altivo, muito elegante e tinha idade indefinida; o cabelo era cor-de-fogo longo e ondulado, tinha um rosto com feições finas, olhos azuis-escuros, profundos e os lábios pontuados de vermelho escuro. De repente levantou-se e dirigiu-se para uma mota de grande porte e dois alemães com estilo grávido de cerveja, provavelmente, os donos das BMWs estacionadas junto à sua mota tentaram meter conversa; ela foi-lhes respondendo formalmente, enquanto calçava as luvas e arranjava um lenço de seda em torno do seu cabelo cor-de-fogo. Os grávidos foram ficando nitidamente atrapalhados com o seu porte altivo e com o facto desta figura mitológica não se desconcentrar das suas tarefas. Finalmente, colocou o capacete e sentou-se na sua mota arrancando com classe. A valquíria seguiu o seu rumo no Vale do Reno, deixando aqueles dois típicos alemães sem saber o que fazer ou pensar.

postado no Insónia a 27/7/2007


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