O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Textos insones #11

Janela Indiscreta

            Vivo há vinte anos na mesma rua em Lisboa e a estação do renascimento é me sempre anunciada do mesmo modo: o meu vizinho do prédio em frente inicia a sua temporada musical e faz questão de a compartilhar com enorme alegria com todos os habitantes e transeuntes da rua; é verdade, mal começa o bom tempo, ele coloca música numa espécie de sagração da primavera; mas o seu reportório musical não inclui Stravinsky, muito menos Domingos Bomtempo, nada disso, o florescimento das flores e os seus pólenes – que me provoca sempre inflamações, dores de cabeça, otites, espirros e me obriga a tomar drogas para o sistema imunológico se defender do que é excessivamente belo – aqui é anunciado com Demis Russos em altos berros; provavelmente, antes de vir para esta casa já era assim, aquele vizinho já colocava o cantor grego na sua aparelhagem; nem imaginam a alegria que contem o fenómeno, até a patine vinílica dos discos, ou seja aquele som de mastigar batata frita vibra rua fora. Este vizinho é um homem difícil de descrever e classificar, não sei que idade tem, mas de alguns anos para cá, o seu cabelo tornou-se grisalho apesar de usar o mesmo penteado, um rabo-de-cavalo muito longo; antigamente era de tal forma negro que cheguei a pensar que se tratava de uma peruca, mas como o tempo lhe deu aquela patine capilar, deduzo que ou já o pintou e deixou de pintar, ou era assim mesmo naturalmente artificial; ele veste-se sempre de azul-escuro, calças de ganga largas, por vezes à boca-de-sino; no verão gosta de usar socas; é muito alto, forte e tem sempre um peculiar medalhão de ouro ao pescoço – desconfio que se trata de algo esotérico. Quando chega o bom tempo, ele abre todas as janelas da casa, levanta os braços e canta, percorrendo as várias divisões, acompanhando o som da aparelhagem de vinil com uma voz de baixo desalinhada, mas muito potente. Este estranho homem tem família: existe a mãe que parece uma assombração do filho, por vezes aparece enquadrada à janela, a sacudir panos do pó ou a espreitar com ar inquisidor de alma penada que está entre dois mundos, tenho imenso medo dela; existe a mulher, muito magra, morena com o cabelo negro comprido e escorrido, com uns óculos na cara iguais desde a década de 70 e que gosta de se vestir de branco; e ele procriou, tem um filho que é uma mistura dos seus genes com a mulher e só não puxou aos pais no corte de cabelo, agora já é um adolescente; e tem um Ford branco muito velho, com uma enorme colecção de selos de impostos pagos colados no vidro da frente. A sagração da primavera nesta família é também acompanhada por outro ritual ao fim da tarde: a mulher vai para o volante do carro e o homem fica à janela a dar instruções. Cá em baixo, a mulher acelera o motor da máquina e ele à janela ele vai gritando: mais mais mais MAIS MAIS, JÁ CHEGA! Então o motor do carro fica a resmungar, ele desce para a rua, entra no carro com a mulher ao volante e dão uma voltinha aos quarteirões do bairro; o rebento sem semelhanças capilares por vezes acompanha este casal maravilha que é moderno, porque a mulher é que conduz, faz as compras, sai para trabalhar, o homem fica em casa; a anciã ou assombração nunca sai ou pelo menos eu nunca a vi na rua e já vivo aqui há vinte anos, ainda bem porque tenho imenso medo dela. Nunca cumprimentei estes vizinhos, eles também não me cumprimentam, porque será? De qualquer modo, no Inverno sinto a falta do colorido absurdo que dão à rua.

Postado no Insónia a 30/4/2007

2 comentários:

  1. li deliciado, mas com a sensação de já conhecer a personagem. deixei de ter dúvidas quando apareceu a mãe, quase no fim do texto...

    Abraço Maria João

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  2. Luís. obrigada pela visita
    abraço

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