O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Poema #77

DESENHADORES DE LABIRINTOS
I

o homem fuma fora de casa
com os pés sobre o degrau de pedra
entre duas portas de madeira
segura numa mão o cinzeiro noutra o cigarro

II

na corrente de ar e com todas as luzes apagadas
assim entrámos pela noite impressa nos vidros
e era fevereiro com incessantes chuvas
que sob alpendres ou desabrigados
nos surpreendeu contra o rosto descoberto
o mês novo e sem nenhum traço de violência significava
que também para nós nunca tinha havido princípio

III

pensavas ter de dizer eu sou o meu rosto reflectido
nos vidros da janela desdobrado em difusos traços
toda a memória a teria trocado por concretos
lugares de pedra poderia cantar os pátios que são
sem princípio os pátios de chão de xadrez
por que passo pisando por superstição apenas
as lajes negras os dedos enfiados nos bolsos
dos jeans um encolher de ombros o sinal
de uma vaga indiferença ou indecisão

IV

entraremos nas palavras como aqueles estudantes
que se sentam em cafés lendo jornais na primavera
e furtivamente levantam a cabeça para olhar em redor
quem haveria agora para ver se olhando em redor
disfarçadamente procurasses um rosto entre tantos

V

ou talvez fosse precipitado chegar a dizer
o que se viu e desejou pois para efeitos
do cómico é sempre trágico acreditar
demasiado cedo em pequenas traições
restam longos caminhos de memória
semeados em caixas de metal presas por fios
de estopa semeados ao acaso pela casa
em baixo de camas em recônditas gavetas
esquecidas essa persistência pega em guardar
todas as coisas em não deitar nada fora
não sabes se é aí que a mesquinhez te visita
ou se apenas uma vaga tristeza plena de desdém
um arquivo dado à certeza da mortalidade própria
(de que consolo servirá saber todo o fim democrático?)

VI

a chuva de fevereiro não chega a macerar
transpõe as páginas dos cadernos esborrata
a tinta traços como novelos que fazes e desfazes
põe entre eles a memória é como um nevoeiro
que lentamente se instala mesmo as palavras
que com tanto cuidado a guardam
às vezes tornam-se vazias que significariam?
é como uma fala surda uma coisa que tentas
escavar só pelo seu sentido acre como ázimo
pão muitos dias esquecidos entre os vimes
de um cesto escondida coisa amarga
ferida que não podes evitar coçar

VII

somos este encontro adiado no tráfego
de ruas que se cruzam na pressa com
que corres a cidade o seu espectáculo
esgotado na subida de escadas limpas
uma impressão indelével no limiar de cada porta
o ar agonizando nos pulmões arquejando aí
está o lugar onde fumas a voz que como passos
numa linha de areia se apaga a mulher
falou o que ela disse a água da voz
que não pudeste guardar e um sentido
de sede por resposta sempre acreditaste
que fosse esse o secreto motivo
por que os homens desenham labirintos
por isso que nas cidades algumas ruas se cruzam

Tatiana Faia –" Lugano". Lisboa: Artefacto, 2001.

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