O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

segunda-feira, 20 de março de 2017

Dia-a -dia #260


 

Sábado passado, dia 18 de Março apresentei "A Grua" de Henrique Manuel Bento Fialho, livro publicado pela Volta d'Mar, aqui fica o texto:

Quando o Henrique me pediu para apresentar o livro, disse-lhe já tinha participado na apresentação de dois livros de poesia, mas a falar de ilustração, porque era autora imagem da capa. Não aceitei logo, li primeiro o livro. Quando estava a ler, de imediato comecei tirar apontamentos, depois telefonei-lhe a dizer que o conseguia apresentar. Trago aqui alguns dos apontamentos para não me perder. Alerto-vos já que não sou a autora da capa, onde vemos uma grua, que vai ser a imagem central que percorre todo o livro.
Sou pintora, mas também sou leitora de poesia. Uma das coisas que me agrada nesta arte maior das palavras é que, antes mesmo de ler um poema, posso ver a mancha do texto nas páginas. Observo a superfície textual dos versos que é variável, ao contrário de uma prosa escrita, que é mais monótona. Há também uma grande qualidade na poesia, que se relaciona com capacidade de síntese, a sua forma estética permite condensar uma enorme quantidade de informação. Aquilo que um ensaio ou uma narrativa nos diz em quilómetros de páginas, na poesia surge com uma escala mais pequena, talvez mais humana, se é que se pode falar assim. Em termos musicais, confesso que também tenho mais empatia em escutar um nocturno de Chopin, do que levar com uma ópera de quatro horas de Wagner, com toda aquela mitologia nórdica para a eternidade, e efeitos especiais para o público acordar a meio.
A forma estética num poema é essencial, porque estamos perante uma arte onde as palavras se afastam do seu uso corrente ou vulgar. Isso acontece através de inúmeros processos. A linguagem surge-nos despragmatizada através do ritmo sonoro das palavras, podendo os aspectos fonéticos atribuir melodia, e fazerem ou não parte da constituição de significado. A oralidade nesta arte continua a ser muito importante, temos de ter em conta que a poesia começou por ser oral, e só muito mais tarde se tornou escrita. Depois de eu falar, o Fernando Mora Ramos irá fazer as leituras do livro, que tem muito mais interesse.
No passado os cânones tradicionais da métrica e da rima eram também ferramentas que auxiliavam a memorização dos poemas. Esse desvio da linguagem do seu uso vulgar pode também ser feito através da metáfora e da metonímia, ou com processos de alteração da sintaxe, podendo mesmo essas alterações terem um significado visual concreto, no caso do verso linear ser substituído pela ideografia. Ora, neste livro do Henrique estamos perante um cuidadoso uso do verso livre, digo cuidadoso porque não recusa o potencial fonético das palavras no seu significado, num poema-sequência que tem uma forte carga imagética, que marca o carácter dramático ao longo do seu desenvolvimento
Em termos de prática artística, eu também me tenho aproximado da poesia através da ilustração. Não gosto nada palavra ilustração, acho-a demasiado literal. Quando crio uma imagem a partir de um poema, tenho a noção de que ela não o vai explicar ou esclarecer a sua leitura. Prefiro a palavra interpretar a ilustrar, porque nessa tarefa sinto-me como um instrumentista a tocar e dar corpo a uma partitura, que no fundo é uma música teórica. É um processo semelhante quando pinto a partir de um poema, tenho de sair de mim própria para lhe dar um novo corpo através da imagem. Mas as imagens surgem de uma forma sucessiva nos poemas.

A poesia tem essencialmente um corpo temporal ao ser ritmo sonoro de palavras e neste aspecto, aproxima-se da música. Mas a música é da ordem do invisível, o som não tem imagem, o corpo inefável da música é o próprio tempo. A pintura, pelo contrário, é uma silenciosa arte do espaço. Existe, no entanto, a hipótese da pintura conter uma certa temporalidade, através de ritmos visuais criados por repetição de cores, representação de translações ou rotações de formas, até mesmo sequências de imagens num mesmo espaço bidimencional, que simulam movimento, e permitem  formar aquilo a que se chama narrativas visuais. Quando interpreto um poema, tenho sempre o problema de só estar a construir uma imagem. Posso, no entanto, associar várias imagens que vejo num poema, numa mesma pintura. Sinto que se perde sempre algo neste processo, devido à construção da ser imagem limitada. Aquilo que vejo acaba sempre por ser um ponto de vista.

Bom, o que vos queria dizer é que existem encontros e desencontros entre estas duas artes: a poesia e a pintura. No diz respeito à percepção estética de ambas, sinto que nos exigem uma concentração que funciona como pausa ou uma suspensão do tempo que está a decorrer. Quando lemos um bom poema ou observamos uma pintura, ambos nos provocam ressonâncias interiores, porque os ficamos a digerir. Por exemplo, numa leitura à primeira vista de um poema, se fixo de imediato algum verso é bom sinal. Se termino a leitura e desejo ler outra vez, e releio, e continuo a ler, melhor ainda. O mesmo se passa com uma boa pintura, depois de a contemplar, não me esqueço dela e continuo a vê-la interiormente, e com vontade de voltar a ver.
Em relação ao livro do Henrique, quando lhe telefonei a aceitar o desafio disse-lhe logo quais os versos que tinha decorado à primeira vista. Mas fazendo o paralelo com o que é ler uma partitura musical, numa leitura à primeira vista não é possível conhecer a música no seu todo, ficasse apenas com uma ideia. Quando voltamos a ler, vamos descobrindo subtilezas e detalhes que nos escapam no imediato, até começarmos a descobrir a harmonia, para termos a noção do todo que ali se encontra, para o interiorizarmos.
Voltando aos apontamentos que fui escrevendo sobre o livro do Henrique: como já referi, trata-se de uma sequência em verso e foi dividida em vinte estâncias, que se desenvolve com uma forte componente dramática e imagética. Logo início surge a imagem central duma grua desactivada numa obra embargada, e um sujeito poético observa esta paisagem melancólica, e pensa no passado construtivo e útil desta máquina silenciada devido à falência dos construtores.
Aparece então a  primeira situação dramática: um enforcamento a atribuir uma nova função a esta grua. Somos também confrontados com a reacção da população, que fotografa o homem tombado na grua e partilha as imagens. De imediato lembrei-me do Je Suis charlie, movimento que surgiu nas redes sociais quando os cartoonistas foram assassinados em Paris. O poema diz-nos:

as pessoas gostam de se ajuntar

ao redor das ocorrências

comentam em surdina infortúnios e desgraças

imaginam motivos e inventam razões

são de uma agilidade insuspeita

quando se lhes pedem cenários

para tragédias alheias

mas detestam ser ameaçadas

pela exibição constante da morte

Depois surge um elemento que resgata um pouco de vida nesta ruína-grua:  uma cegonha constrói um ninho. O sujeito poético imagina, então, o que a cegonha vê nos tapumes da obra embargada lá em baixo, imagina o que está escondido, o que ninguém pode ver, numa projecção do id ou inconsciente nesta paisagem. Imagina também que se nascessem ervas no espaço dos tapumes, poderia ser útil para um rebanho de ovelhas.
Entramos depois num universo onírico: ele sonha com a grua numa tempestade onde apenas o seu gancho se move como um pêndulo. Este sonho/pesadelo inicia um diálogo interior no sujeito que observa a grua diariamente. O poema diz-nos:  e não foi em sonhos que vi esta grua voar.
Nos diálogos interiores, ele projecta-se nesta paisagem quotidiana que observa da janela do seu quarto, espaço privado onde adormece, sonha, acorda e pensa. Surgem assim reflexões sobre as relações entre o sonho, a imaginação, a realidade, a loucura, as intempéries naturais, o estado do mundo, e também sobre a sua própria existência individual.
Ao observar que a grua desenha na paisagem um triângulo escaleno, ele reflecte também sobre o cosmos da geometria e o caos do mundo, e sobre as fórmulas e a falência de teoremas. Assume-se depois como uma forma deformada, descrente nos homens ou utopias. Sente-se cansado, mas não perde o espanto em observar aquela grua quotidiana silenciada, sempre a indicar o caminho de obra embargada, edifício emparedado e máquina inutilizada. Nestas projecções do sujeito na paisagem surge um dos momentos mais belos desta sequência, também por ser uma reflexão sobre as próprias palavras dentro do poema. Desculpem lá, eu não resisto e vou ter de ler:

as palavras têm seu peso

quando dizemos amor

a palavra levita como uma pena

no regaço de uma brisa de verão

quando dizemos ódio

a palavra cai na terra e levanta pó

é como uma pedra

arremessada sem perdão

 

mas se dissermos silêncio

quem por nós erguerá tamanho peso?

é palavra tão sem medida

que mil braços humanos não chegariam

para levantá-la um milímetro que fosse

desse chão onde o ódio nos espatifa

 

queria uma grua que levantasse o silêncio

à altura do nosso amor

para que daqui onde me encontro

pudesse continuar a olhar-te

à distância de um sonho

onde fosse autêntico como um punhal

cada vocábulo  deste triste quadro

os teus lábios são um navio de esperança

a minha boca um porto de abrigo

e à deriva andamos ambos na ausência um do outro

enquanto reclamamos

de ser tudo como dantes:

tão indolente que parece quase morto

tão indolente que prece quase morto

 
Este sujeito poético fechado, cansado, sente-se impotente em relação ao estado do mundo. Refere então que os poetas do seu tempo, sobretudo as raparigas reivindicam incêndios, mas parecem-lhe fósforos inofensivos. (Aqui lancei a pergunta ao Henrique, se faz sentido nos tempos conturbados em que vivemos, existir uma lírica social). Perto do fim desta sequência, de um modo inesperado, é-nos anunciado com data e tudo, que houve uma fusão entre o sujeito poético e objecto grua. Surge assim: “se digo nós é porque já não distingo/ quem discursa no interior desta morte.”
Esta fusão é apresentada também como um momento em que ambos claudicaram ou seja, vacilaram, fraquejaram ou coxearam em conjunto. Vou terminar a apresentação com as palavras finais deste poema sequência do Henrique, porque é um final aberto:

seja então este o antepenúltimo verso
conquanto todas as manhãs desabrochem
no planalto dos sonhos.

 

 

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