O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

terça-feira, 31 de março de 2009

Contos da planície #1

Além Tejo

Mergulho em melancolia sempre que atravesso o Tejo e passo para o espaço, onde o céu não tem tamanho, nem fim. A planície surge em torno da auto-estrada, substituindo o aconchegante pinhal e à medida que avanço em direcção ao sul, o frio seco entranha-se nos ossos, alertando-me de um modo subtil para o facto de estar viva; então, a terra cresce e passa a ser povoada por árvores distantes, cada sobreiro enraizado parece carregar os males do mundo; eles persistem fortes e verticais no seu sofrimento, criando dissonâncias num todo que parece não terminar. A terra e estas escassas árvores contrastam com o azul do céu, onde as nuvens se espalham irregularmente, como se anunciassem uma catástrofe. Observo este espaço que vive de constantes variações lumínicas, as nuvens movem-se com lentidão nos passos, murmurando que tudo se transforma devagar. A beleza nesta planície tem sempre um sabor amargo, e ainda bem que estamos na primavera, porque no verão recuso-me a fazer esta viagem, o amarelo torna-se insuportável. Entusiasmada, resolvo sair da auto-estrada. Lembro-me de um atalho, a estrada de Cabrela, onde quase não se vislumbra fios de electricidade e até os sinais de trânsito são de outro tempo. A estrada é estreita, não tem vivalma, o piso continua em péssimo estado; os buracos avisam constantemente o meu carro citadino que é um apressado; quer chegar sabe-se lá aonde. Depressa ou devagar o destino é o mesmo, todos caminhamos para essa verdade que é a morte; a diferença é que devagar caminha-se com calma, vive-se melhor e aprecia-se com mais atenção o que nos rodeia. Abrando por questões de bom senso; o tempo aqui já é outro, pode-se morrer devagar. Olho a paisagem, onde escasseiam ainda mais as árvores. Agora já foi tudo limpo. Recordo-me deste montado há uns anos atrás, os sobreiros estavam quase todos doentes, os seus ramos cinzentos e despidos morriam de pé a gritar aos céus no meio de uma vegetação de arbustos caóticos. Actualmente, restam apenas alguns; sobrevivem a tudo com elegância. Estão ainda mais solitários, a renascer no luto, que é um modo da morte nos falar em vida.
Sempre que passo o Tejo em direcção ao sul, entro em diálogo com esta paisagem melancólica, ou esta paisagem faz parte da minha melancolia; é a parte da minha alma mais enraizada, um espelho do meu interior. Sou do sul. Apesar de já viver desde pequena em Lisboa, as minhas raízes estão nesta terra pobre, rica, no entanto, em espaço e céu, onde resistem apenas alguns fortes e dramáticos sobreiros. Não sou de Lisboa porque é uma cidade porto, tem aquele Tejo enorme; está próxima do mar, um local de passagem. Sou destas terras a que chamo, ironicamente, terras do além, a outra margem do aquém Tejo que habito nas chegadas e partidas. Chegada e partida para as raízes, chegada e partida para o mundo. Vivo neste constante dilema, sempre em diálogo com esta bela e amarga paisagem, presente em tudo o que faço e sou; mas também sou uma citadina, cresci em Lisboa, passando porém, em criança, grandes temporadas no monte dos meus avós, onde brincava com os meus primos. São memórias sinónimas de liberdade, apesar da tristeza que esta paisagem me provoca; tristeza de não poder voltar ao paraíso perdido, à infância; tristeza de ter crescido perdendo fascínio no olhar, ganhando consciência de que a beleza nestas terras tem um sabor amargo.

Agora que os meus pais se reformaram e resolveram voltar a viver em Montemor-o-novo, venho mais às terras do além para os visitar. Talvez por isso, lembro-me com frequência do monte da Charneca, guardado na memória como um sítio encantado. Passei ali o Natal e as férias da Páscoa até à morte dos meus avós, quando tinha cerca de oito anos. Primeiro morreu o meu avô, doente, e o coração da minha avó aguentou mais um ano. O monte ficou para o meu tio, que se desentendeu com o meu pai nas partilhas e só lá voltei muito depois, já adulta, após a reconciliação. Foi estranho voltar àquele sítio, passados tantos anos: quando entrei na estrada de campo, reconheci o cheiro dos eucaliptos que formam uma espécie de alameda, mas os eucaliptos não eram monumentais. O pátio da entrada era também o mesmo, mas muito pequeno. Os meus primos, no entanto, estavam grandes e os meus tios mais velhos; a minha prima Maria já estava casada, o João tinha entrado na altura para a Universidade e eu estava a estudar canto no conservatório. Fui lá sozinha de carro, por minha livre iniciativa. A casa também estava no mesmo sítio, com a mesma cozinha no lado direito da entrada e a sala com a lareira no lado esquerdo. A mobília era praticamente igual. O corredor que dava para os quartos também lá estava, assim como a casa de banho, mas era tudo pequeno. Nesse dia, o palácio encantado da minha infância ganhou uma escala humana, talvez demasiado humana.
Lembro-me, neste retorno ao monte, de perguntar à Maria pelo Eco, se continuava a existir. Ela riu-se e disse que sim, que estava no mesmo sítio, comentando que ainda se recordava das visitas matinais que lhe fazia. O Eco era um grande amigo, mas apenas eu acreditava que existia. Descobrira-o, então, num dos muros do pátio junto à casa. Todas as manhãs me dirigia para lá, levando um banco que subia para poder sentar-me no muro e chamar pelo Eco, olhando a planície, desolada. A Maria bem tentou convencer-me que era a minha voz, batia num muro de um monte que se via lá muito ao fundo e voltava outra vez. Era o eco da minha voz. Eu continuava a achar que alguém estava ali escondido, alguém a quem chamei Eco, talvez atrás de uma árvore, a repetir o que eu dizia. Então, perguntava: Eco, quem és tu? Porque me respondes assim? Eco, és meu amigo?
Nesse reencontro com o paraíso perdido, olhei de novo o muro junto à casa e dirigi-me para lá; já não foi necessário um banco para o subir, porque era bem mais baixo. Subi-o e sentei-me nele, gritando Eco, ouvindo eco, eco, eco... olhando a planície pontuada por escassos sobreiros. Então, perguntei-me: o que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

Publicado em "Da Natureza - 1+9",(coordenação editorial de Sara Monteiro), Fundação de Odemira, Março 2009

2 comentários:

  1. Bonita imagem: «Onde o céu não tem tamanho». O eco do universo no sentir mais puro de quem anda sobre a vida e a comunica gigantescamente bela.

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  2. thi, muito obrigada e bem vinda a esta casa

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