O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Textos insones #18


Muitas das perguntas que fazemos não têm respostas ou na própria pergunta a resposta já está incluída, mas sem resposta; sempre gostei de pessoas que sabem fazer perguntas, que de algum modo me conseguem tirar o tapete debaixo dos pés ao questionarem-me, ao colocarem-me dúvidas sobre o mundo, sobre a existência, sobre o sentido de tudo o que nos rodeia, sobre o que somos ou sobre as nossas acções. Inicio aqui esta nova série de posts porque me lembrei de uma situação curiosa: no Verão passado estava na biblioteca do museu de Serralves a observar uma exposição sobre as publicações de Christian Boltanski e o segurança presente na sala, ao ver-me concentrada numa vitrine onde estavam expostos retratos de SS com as suas famílias no dia de natal ou no dia do casamento, rodeados pelos seus filhos, dirigiu-se a mim e perguntou-me:

- Desculpe, reparei que está a observar atentamente esta exposição. Conhece bem a obra de Christian Boltanski?
- Conheço, é um artista que aprecio muito.
- Então porque é que ele expõe estes retratos familiares dos SS?
- Para nos colocar questões terríveis a partir de imagens. Lembro-me agora de uma que está bem mais perto de nós: e o serial-killer de Santa Comba Dão? Não era ele um GNR respeitado e integrado socialmente, no entanto matava raparigas?
É difícil imaginar que os SS eram homens com afectos ou que um vulgar criminoso também os tenha, Boltanski pergunta-nos isso; na sua obra coloca-nos muitas vezes questões sobre memórias históricas e colectivas, introduzindo-nos na esfera privada dessas memórias, através de imagens ou objectos que inventaria e nos apresenta, por vezes, com uma enorme subtileza e até delicadamente. Converso um pouco com o segurança do museu sobre este artista, digo-lhe que tem ascendência judaica. Boltanski nasceu no final da segunda guerra mundial em Paris, o seu pai era judeu e foi perseguido durante a guerra, a sua mãe era católica e a maior parte dos amigos dos seus pais foram sobreviventes do Holocausto; ele apesar de ter recebido uma educação católica, não é religioso, mas a noção de culpa é um dos temas que tem trabalhado criativamente. Numa entrevista presente no catálogo publicado pelo Centro Galego de Arte Contemporânea em 1996, afirmou que ao inventariar estas fotografias queria colocar as seguintes questões: “pode qualquer um de nós ser um assassino? um bom pai de família pode cometer um crime?” Christian Boltanski não se considera um judeu no sentido tradicional do termo, ele nunca entrou numa sinagoga e afirma que o seu trabalho não é sobre o Holocausto, mas sim sobre o que aconteceu depois. As fotos expostas naquela vitrine da biblioteca pertencem a um livro intitulado Sans Sousi, onde inventariou fotografias de SS encontradas em Berlim. Ao inventariá-las, Boltanski quis mostrar-nos que “...os criminosos não são diferentes de outros homens e que um agente das SS poderia beijar uma criança de manhã e matar dezenas de outras durante a tarde”. Esta constatação levou-o a ter um olhar inquieto ou desconfiado sobre o outro na vida quotidiana e estas experiências que ele não viveu, mas que os seus pais viveram durante a guerra, levaram-no a sentir-se como uma criança do Holocausto e a colocar questões como: “ este comerciante encantador com quem me cruzo todas as manhãs, não poderia – se amanhã o poder político o permitisse – matar-me?” Existem perguntas que não têm respostas, ou às quais só poderemos responder perguntando incessantemente. Por isso admiro tanto a obra de Boltanski, porque é uma interrogação constante. Boltanski questiona-se e questiona-nos o mundo através da sua arte, mas tem consciência de que as suas acções são ínfimas perante a realidade, porque vive num mundo onde já não se acredita numa humanidade melhor, onde as utopias políticas morreram, onde as esperanças desapareceram, onde a guerra e a violência continuam e são sinónimo de estupidez e crueldade da espécie humana. Termino este post com as próprias palavras do artista, presentes no catálogo que já referi, que de algum modo contêm alguma esperança: “Durante o séc.XX, a noção de vanguarda em arte estava frequentemente ligada à ideia de utopia política. Os artistas pensavam ter a possibilidade de mudar o mundo, de estabelecer leis universais. Agora isso parece impossível. Vivemos cada vez mais um mundo pós-humano, virtual, onde a ideia de moral, de bem ou de mal, de caminho para um mundo perfeito já não existe. Felizmente, ainda nos resta o que eu chamo de utopias de aproximação: não podemos mudar o mundo, mas podemos falar ao nosso vizinho, fazer uma pergunta, ou como Félix Gonzalez-Torres, oferecer um caramelo, uma imagem. Procurar reagir à nossa volta, aí sem ir mais longe”.


Lembrei-me deste texto depois de uma alegre cavaqueira com o Joaquim sobre utopias e outras manias, ele foi postado no Insónia a 20.1.1007

2 comentários:

  1. "este comerciante encantador com quem me cruzo todas as manhãs, não poderia - se amanhã o poder político o permitisse - matar-me?"

    podia. a primeira vez que me dei conta disso foi ao ler uma entrevista de um bósnio.

    quando a ex-jugoslávia se desfez, pessoas que viviam ao lado umas das outras, que se cumprimentavam cordialmente todos os dias, tornaram-se nos piores carrascos.

    há um amigo meu, que referindo-se ao nosso mau feitio (o meu e o dele) por não calarmos aquilo que não gostamos, costuma dizer-me: "se um dia houver uma revolução, nós seremos os primeiros a ser mortos".

    eu sei que ele tem razão. e sei que o golpe fatal virá de onde menos espero.

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  2. O teu amigo tem razão, como sou desbocada estou sempre a sentir isso; mas não te cales por causa disso, Joaquim, o teu mau feitio faz falta!

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