e te sentes na cama como fazias antigamente.
Afasta-me os cabelos e olha-me nos olhos. Não me beijes
porque beijar um morto causa repugnância
e eu não quero que o nosso último encontro seja amargurado.
Depois, hás-de falar. Como outrora o fazias,
ao morrer melancólico da tarde,
quando vinhas e ficávamos a fitar-nos fixamente,
como se a Vida parasse para além dos nossos olhos,
e o mundo fosse o quarto e nós dois a humanidade inteira.
Hás-de falar, Amor. Não importa de quê
desde que o faças carinhosamente baixo...
Dir-me-ás qualquer coisa. Qualquer coisa, mas que sejas tu a dizê-la,
e eu possa ouvir-te, como outrora, extático e feliz,
mudamente, inexplicàvelmente deslumbrado...
E ouve, Amor, não chores. Que eu quero que no último encontro
o teu rosto conserve a beleza dos encontros antigos.
Olha-me nos olhos e lastima-me interiormente.
Eu estarei presente e, de algum modo, ouvirei a prece
que hás-de rezar no silêncio cálido do quarto.
Daniel Filipe, 1946
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