O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

sábado, 21 de julho de 2012

Leituras #28


Antes de deixar Coimbra, primeiro para, no Porto, leccionar num liceu da cidade, depois, já professor efectivo, para ensinar português e francês no liceu Mouzinho da Silveira, em Portalegre, José Régio viveu, na Alta, não longe da Rua Larga, ao tempo a antecâmara da Universidade, num desses típicos becos coimbrões, chamado, não sei porquê, Rua das Flores. De facto, flores não havia por ali, por aquele bairro de calçadas esboroadas, e muito menos as havia na pensão habitada pelo poeta, onde se instalara a primeira redacção da presença. (Mais tarde, em minha casa, em Santo António dos Olivais, e, por fim, depois de um efémero rés-do-chão, para esse efeito expressamente alugado na Rua do Corpo de Deus, à Baixa, no Porto, em casa de Adolfo Casais Monteiro.)

A pensão da Rua das Flores, 37, que suponho lá estará ainda, senão como pensão, como república ou casa particular, era um prédio alto – três andares – , muito estreito, quase enviesado, com duas janelas de frente, em guilhotina, claro está, e com pouco fundo, espécie de torre por onde trepava uma escada íngreme, de degraus carunchosos, que era preciso subir com muita cautela, tal a sua inclinação.

Ali José Régio passou, creio, os anos da sua formatura, e ali permaneceu ainda, com quarto privativo, algum tempo depois, aluno da Normal Superior. Prendiam-no lá, além da dona da casa, que não cheguei a conhecer, a criada para todo o serviço, a Carlota, modelo do desenho que ilustra a capa do número 22 da presença (Setembro-Novembro de 1929). Esta Carlota, «a que ficou sem par», na legenda do esquisso que Régio me ofereceu, e ainda conservo, tinha pelo Zé-Maria uma dedicação de cadela, embora não poucas vezes lhe arreganhasse caninamente os dentes. Rebarbativa e terna a um tempo, a Carlota levava os dias a lidar e a praguejar. Algumas vezes, sentada à mesa do refeitório da pensão – em parte modelo também da pensão de D. Felícia do Jogo da Cabra Cega –, pude assistir às reprimendas que a Carlota se não escusava de lhe dar, e Régio como que espicaçava, enquanto ele e os demais hóspedes – uns quatro ou cinco, julgo lembrar-me – comiam a clássica sopa de couves das velhas pensões coimbrãs. Tão alheio a qualquer conceito de higiene era, por esta altura, o viver dos estudantes em Coimbra, que a pensão da suposta D. Felícia nem mesmo dispunha de qualquer rudimentar casa de banho – que digo?, não dispunha, sequer de um W.C. No sótão, esconso, de telha-vã, é que os comensais resolviam os seus problemas, e num mesmo vaso, um alto bispote, como então se chamava a essa espécie de tulha de barro, de proporções reduzidas, «sanita» comum. Aí, nesse sótão de telha-vã, W.C. da pensão da suposta D. Felícia, é que José Régio arrecadava as sobras da presença, antes do meu regresso a Coimbra. Ora como, ao tempo, a nossa «folha de arte e crítica» era impressa no tal papel acetinado, como que de farmácia, e a ruma de folhas se acumulavam, imprudentemente, não longe do tal vaso higiénico – ou anti-higiénico –, aconteceu o que era de esperar. Alguns dos comensais da suposta D. Felícia, para não irem mais longe, e à falta de papel higiénico, luxo então desconhecido em Coimbra, pelo menos na Coimbra dos estudantes, muito à vontade, na altura própria, deitavam mão aos números da presença, abertos no soalho, em folhas devidamente acamadas, completando com elas, graças à sua acetinada calandra, a operação que ali iam fazer, ao sótão de telha-vã. Assim rarearam, a partir de certa data, os exemplares da nossa folha. Creio que Régio não dera por isso. Só deram por isso os que depois – Branquinho e eu – chamaram a si a administração da revista. Já era tarde. Mal empregados, vendem-se hoje esses números a peso de oiro.
João Gaspar Simões – José Régio e a História do Movimento da “Presença”. Porto: Brasília Editora, 1977. pp.78-80.


Da esquerda para a direita: José Régio, João Gaspar Simões, Albano Nogueira, Fernando Lopes-Graça e Adolfo Casais Monteiro.

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