Antes de deixar Coimbra, primeiro
para, no Porto, leccionar num liceu da cidade, depois, já professor efectivo,
para ensinar português e francês no liceu Mouzinho da Silveira, em Portalegre,
José Régio viveu, na Alta, não longe da Rua Larga, ao tempo a antecâmara da
Universidade, num desses típicos becos coimbrões, chamado, não sei porquê, Rua
das Flores. De facto, flores não havia por ali, por aquele bairro de calçadas
esboroadas, e muito menos as havia na pensão habitada pelo poeta, onde se
instalara a primeira redacção da presença.
(Mais tarde, em minha casa, em Santo António dos Olivais, e, por fim, depois de
um efémero rés-do-chão, para esse efeito expressamente alugado na Rua do Corpo
de Deus, à Baixa, no Porto, em casa de Adolfo Casais Monteiro.)
A pensão da Rua das Flores, 37, que
suponho lá estará ainda, senão como pensão, como república ou casa particular,
era um prédio alto – três andares – , muito estreito, quase enviesado, com duas
janelas de frente, em guilhotina, claro está, e com pouco fundo, espécie de
torre por onde trepava uma escada íngreme, de degraus carunchosos, que era
preciso subir com muita cautela, tal a sua inclinação.
Ali José Régio passou, creio, os
anos da sua formatura, e ali permaneceu ainda, com quarto privativo, algum tempo
depois, aluno da Normal Superior. Prendiam-no lá, além da dona da casa, que não
cheguei a conhecer, a criada para todo o serviço, a Carlota, modelo do desenho
que ilustra a capa do número 22 da presença
(Setembro-Novembro de 1929). Esta Carlota, «a que ficou sem par», na legenda do
esquisso que Régio me ofereceu, e ainda conservo, tinha pelo Zé-Maria uma
dedicação de cadela, embora não poucas vezes lhe arreganhasse caninamente os
dentes. Rebarbativa e terna a um tempo, a Carlota levava os dias a lidar e a
praguejar. Algumas vezes, sentada à mesa do refeitório da pensão – em parte
modelo também da pensão de D. Felícia do Jogo
da Cabra Cega –, pude assistir às reprimendas que a Carlota se não escusava
de lhe dar, e Régio como que espicaçava, enquanto ele e os demais hóspedes –
uns quatro ou cinco, julgo lembrar-me – comiam a clássica sopa de couves das
velhas pensões coimbrãs. Tão alheio a qualquer conceito de higiene era, por
esta altura, o viver dos estudantes em Coimbra, que a pensão da suposta D.
Felícia nem mesmo dispunha de qualquer rudimentar casa de banho – que digo?,
não dispunha, sequer de um W.C. No sótão, esconso, de telha-vã, é que os
comensais resolviam os seus problemas, e num mesmo vaso, um alto bispote, como
então se chamava a essa espécie de tulha de barro, de proporções reduzidas,
«sanita» comum. Aí, nesse sótão de telha-vã, W.C. da pensão da suposta D.
Felícia, é que José Régio arrecadava as sobras da presença, antes do meu regresso a Coimbra. Ora como, ao tempo, a
nossa «folha de arte e crítica» era impressa no tal papel acetinado, como que
de farmácia, e a ruma de folhas se acumulavam, imprudentemente, não longe do
tal vaso higiénico – ou anti-higiénico –, aconteceu o que era de esperar.
Alguns dos comensais da suposta D. Felícia, para não irem mais longe, e à falta
de papel higiénico, luxo então desconhecido em Coimbra, pelo menos na Coimbra
dos estudantes, muito à vontade, na altura própria, deitavam mão aos números da presença, abertos no soalho, em folhas
devidamente acamadas, completando com elas, graças à sua acetinada calandra, a
operação que ali iam fazer, ao sótão de telha-vã. Assim rarearam, a partir de
certa data, os exemplares da nossa folha. Creio que Régio não dera por isso. Só
deram por isso os que depois – Branquinho e eu – chamaram a si a administração
da revista. Já era tarde. Mal empregados, vendem-se hoje esses números a peso
de oiro.
João Gaspar Simões – José Régio e a História do Movimento da “Presença”. Porto: Brasília Editora, 1977. pp.78-80.
Sem comentários:
Enviar um comentário