Creio ter aqui chegado por um
certo engano,
e por isso o meu nascimento foi
uma avareza de rosas,
e os cães rosnaram no extremo
da charneca, e um uivo
inquietou a solidão doirada da
planície para que algo
me dissesse como estou aqui,
como cheguei aqui,
como o meu leite é negro sob a
tempestade dos homens
e os elementos não sabem como
interromper a ameaça.
Onde anda meu pai a esta hora
infinita, não sei.
De todos os lugares chegam
vozes impossíveis,
e o meu berço azul brilha no
centro da terra, nesta casa
de cal, nesta branca tirania da
suavidade, que Eliat ignora
e só um mar vermelho poderia
aquietar.
Venho à vida, e venho a um
lugar estranho onde as vozes
se levantam para murmurar, e
por murmurações
entendo a condenação à
fogueira, e a chuva de larvas
nos campos em volta, e os
cavalos desenfreados
que vão de igreja em igreja
procurar a redenção,
e os homens que, nas tendas,
preparam as facas.
Aqui nasci, e não tenho onde
repousar a cabeça, e nada
vem transformar a água em
vinho, e a minha língua arde
pela impossibilidade de escolha
das primícias, sendo que quero
uvas, maçãs, um pêssego
absoluto, e toda a paz da planura,
toda a paz da humildade,
enquanto os meus mortos revogam
os meus cânticos, e eu canto
como cantam as raparigas de Jerusalém.
Amadeu Baptista in "Outros Domínios Clamor Por Flobela Espanca", Coimbra, Temas Originais, 2011.
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