O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Leituras #23

18

Era uma vez uma cidade habitada por palavras em que cada uma vivia em sua casa com as portas fechadas mas constantemente se visitavam ou então saíam para a rua e passeando cruzavam-se com outras palavras e saudavam-se mas com o crescimento progressivo da cidade as palavras quando saíam para a rua começavam a chorar umas com as outras e chocando-se retiravam-se encolerizadas e regressavam a casa mas já não regressavam como haviam saído e dentro de casa aumentavam por um efeito de cólera morosa e lembrando sempre as outras palavras começavam crescendo dentro de suas casas e da próxima vez saíam para a rua já iam transformadas e quando encontravam outra vez as palavras passava-se outra vez a mesma coisa e regressavam a casa e continuavam a crescer e sempre em direcções e cresciam de tal modo que já não conseguiam fechar as portas e novos braços abriam as janelas e a cólera trepava pelas paredes e começavam a escavar o texto e ligadas ao andar de cima entrelaçavam à palavra do outro apartamento que também estava encolerizado e já chegava até ao telhado e subia pela antena da televisão e gritava encolerizado com as palavras dos outros prédios já subindo pelo céu acima e toda a cidade estava aos gritos e já não havia espaço para as palavras crescerem confundiam-se e as palavras estavam todas unidas irremediavelmente e gritavam todas ao mesmo tempo de modo que ao longe era um só grito enorme que mais longe se transformava num sussurro e de muito mais longe até não se ouvia nada.

Ana Hatherly, "351 Tisanas". Lisboa: Quimera, 1997.


Sem comentários:

Enviar um comentário