O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Dia-a-dia #288

Todos os anos em Setembro, o Campo Grande e o jardim do Campo Pequeno são invadidos por bandos de pinguins- morcegos. Houve uma vez que me irritei, mandei um berro e interrompi um desses rituais militaristas, perguntei ao bando se estava a brincar ao fascismo. Aquilo calou-os momentaneamente, deixou-os perplexos a olharem uns para os outros, mas quando me fui embora recomeçaram a urrar. Na semana passada ao sair do metro em direcção a casa para almoçar deparei-me com o jardi...m ao rubro, havia vários bandos de pinguins e pareciam estar plantados nos canteiros à sombra dos plátanos (que me dão conta da respiração). Desta vez dirigi-me a uma das portas da arena sangrenta e ali fiquei com alguma distância a olhar a situação. Reparei que os transeuntes ignoram e nem sequer param perante o espectáculo. E por ser um espectáculo num espaço público, ou cívico se quisermos chamar os bois pelos cornos, desviei-me da arena e resolvi ser espectadora, dirigi-me aos que estavam plantados no canteiro à esquerda, porque faziam mais barulho. Nada de novo, havia um ser do sexo masculino com uma grande colher de pau na mão (será que aquilo compensa alguma coisa?) que gritava alarvidades, estava acompanhado por um pequeno bando também fardado e os noviços à paisana faziam eco. Mas aquilo durou pouco tempo, ou já estavam a acabar ou não gostaram de ser observados, ou as duas coisas. Como entretanto começaram a arrumar o estaminé para darem de frosques, dirigi-me ao bando da direita e fiz o mesmo: ali eram sobretudo carrascas vampiras e não gostaram nada de ver uma kota de braços cruzados a observar o ritual, começaram a mandar-me uns sorrisinhos cínicos. Se calhar também enviei uns sinais quaisquer, afinal somos todos bichos, mas não disse uma palavra. Vi que estavam a exigir aos noviços, que eram sobretudo do sexo masculino, lerem textos em voz alta. Achei logo que deveriam pertencer a uma qualquer Faculdade de Letras, uma vez que o putedo imperava. Não fixei o conteúdo do texto que o miúdo desfardado estava a ser obrigado a ler, mas reparei que ele estava envergonhado e cada vez falava mais baixo. Nisto uma minorca fardada muito voluntariosa tirou-lhe o texto das mãos e fez uma referência qualquer ao «Cântico negro» de José Régio, caramba, afinal existia ali uma intelectual. Comecei a achar que a minha presença incomodava o miúdo à paisana e vi-me embora, mas cheguei à conclusão que um dos problemas das praxes é o pessoal estar a dar espectáculo num espaço público e nem sequer existem espectadores, para além dos intrevenientes, ou seja, não estão habituados a serem observados por estranhos.

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