O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

terça-feira, 8 de junho de 2010

Leituras #25

TEXTO PARA A GÉNESE DO EROS FRENÉTICO

Dantes eu era um escritor tão ingénuo que quando queria dizer porta escrevia a palavra porta. Felizmente com o decorrer do tempo tornei-me um escritor avisado e hoje quando quero dizer porta escrevo o gato mia.
Essa é a génese do eros frenético.
O que eu quero dizer é que o equívoco foi sempre o contrário da polifonia, isto é, que o prazer é uma perversão, uma deturpação do sofrimento. Porque eu nunca digo o que quero. Sou uma outra espécie de licencioso: como não digo o que quero, digo o que não quero.
Essa é a génese do eros frenético.
Alguns críticos muito ilustrados ainda hoje chamam a isso inspiração. Estão ainda muito ligados aos problemas respiratórios. Para mim esse problema deixou de ter importância porque o meu sistema respiratório é automático (não é verdade que só fazemos bem aquilo que fazemos automaticamente?). Esse problema da respiração – inspiração/expiração – para mim está definitivamente resolvido: sou um mecanismo avisado e por isso conheço a força da recusa.
Essa é a génese do eros frenético.
Os meus colegas meus contemporâneos entram em estado de agonia por estarem constantemente com a cabeça para baixo construindo os seus pedestais e como desde logo se colocam em cima de eles custa imenso continuar o trabalho. Alguns acrescentam-lhes elaborados ornamentos o que complica a posição e a expositura. E depois andamos todos a tropeçar nesses moldes que ficam pelo caminho. Eu principalmente. Porque não me resigno. Estou sempre a andar. Tenho essa erótica. Bato à porta dos amigos e pergunto: diga-me por favor se está ai o meu ombro esquecido. Ao que eles: esta pequena está cada vez menos espirituosa. Isso delicia-me. Tenho essa frenesia. Sento-me à secretária e trabalho na detergência morosa, minha obra-prima.
Sou como o/a filósof o/a celerad o/a.
Essa é a génese do eros frenético.
Mas isso foi há milhões de palavras. Agora produzo pensamento em palavras por segundo.
O que acontece entre nós é o não-acontecimento até à absurdidade. Às vezes penso que é fascinante viver num ambiente assim inconcebível. Mas na verdade gostaria de poder fazer qualquer coisa de radical uma detergência profunda ontológica a isto.
Porque do que todos gostam ainda é do poeta que diz «a tua boca é um sorvete de morango» ou «dos lupanares saem os devassos».
Que fazer perante as flâmulas do optimismo pueril desses devaneios de satírico e petroleiro (sic)? De facto a filosofia não nos descortina bons augúrios na vida.
Resta-nos apenas o raciocínio calmo e supicaz.
Essa é a génese do eros frenético.
A zombaria é evidente mas exprime a verdade. Sou apologista das sátiras dicacíssimas.
Mas nunca exagero. O máximo que eu digo é: não façam isso à vaca.
Sou portuguesa e o meu estilo é barroco. O barroco é um estilo ornamental oriundo no desgaste (é daí que vem a minha tese da detergência) ou na atribulada escrituração da ostra. Tanto é o estilo objecto para a escrita e pináculo da coluna vertebral uma cadeia de causalidades concatenadas produto de uma natureza transbordante. É por isso que o português se exprime na oportunidade do super-mercado.
Ainda há dias ouvi dizer a alguém: o que me vale é as coisas que eu não sei. E assim dizendo encolhia os apotécios. Não não basta que as coisas sejam verdadeiras também é preciso que sejam verídicas. Já Apolónio o Filomuso autor da Balança Intelectual criticava o Fulano Indiferente.
Mas eu não posso preocupar-me com tais trivia. Quando se atinge o nível da gargalhada reprimida começa a grande sabedoria.
Essa é a génese do eros frenético.

Ana Hatherly, A Maldade Semântica (1966-68) in “ Um Calculador de Improbabilidades”. Lisboa: Quimera, 2001. P-176, 177.

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