O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?

terça-feira, 16 de março de 2010

Textos insones #27

A Cidade dos Anjos


Voei para Berlim na semana passada e acho que ainda não aterrei aqui no chão; há muito que desejava as asas desta cidade, talvez desde que vi o filme de Wenders e o destino já me tinha pregado partidas engraçadas em relação a ela. Antes de partir, a amiga que tem sido até agora o pretexto para voar para as terras germânicas avisou-me que Berlim é a cidade dos anjos e que no seu enorme espaço encontramos as mesmas pessoas em sítios totalmente diferentes. Desta vez não foi possível encontrarmo-nos na Alemanha e viajei com o meu amigo, contei-lhe esta história antes de aterrarmos por lá e ele não se esqueceu. Assim que iniciámos os nossos passeios nas ruas de Berlim, ele chamou-me a atenção para os transeuntes que reencontrávamos nos locais mais inesperados; alertou-me, por exemplo, que um grupo no metro, sentado ao pé de nós era o mesmo que estava no aeroporto, quando fomos fumar um cigarro lá fora. Eu não me lembrava deles, nem os reconheci. Antes de entrarmos na Filarmónica, para um concerto memorável, chamou-me a atenção para uma personagem que já tinha visto num outro ponto da cidade, afirmando que se tratava de um anjo. Fiquei um bocado triste, senti que não tinha capacidades para reconhecer anjos, sendo assim despassarada, nem os vejo. Mas nessa noite, após o concerto, fui eu que reparei numa situação insólita: no metro, estávamos os dois de pé, junto à porta no interior de uma carruagem com bancos laterais e vi dois homens sentados frente-a-frente abraçados, impedindo a passagem pelo corredor; algo os unia de tal forma que permaneceram assim sem dar pela paragem da máquina na estação. Os outros passageiros não olhavam para o que se estava a passar, mas eu não conseguia parar de olhar e fiquei de tal modo perturbada, que não tirei a máquina da mala para fazer uma fotografia, apesar de desejar. Quando saímos, o meu amigo chamou-me tonta por não ter coragem de fotografar algo tão belo, achou que eles não se iriam importar, poderia oferecer-lhes depois a fotografia; continuei a espreitar pela janela da carruagem aquele abraço intenso que não se desfazia e disse-lhe que sentia aquele instante como símbolo da reunificação, da queda do muro de Berlim, como uma ressurreição. No dia seguinte, encontrei pela primeira vez um anjo, estava sozinha e ele acenou-me no interior do Museu Judaico dizendo: Don’t you remember? Era um homem que de manhã me tinha ajudado no metro, quando estava a tentar tirar um bilhete na máquina; reparei nele a falar em alemão com outra pessoa na máquina ao lado, porque se virou para mim e explicou-me em inglês que tínhamos de comprar o bilhete num quiosque, as máquinas estavam avariadas. Segui-o e já no quiosque perguntou-me qual era a minha nacionalidade, quando disse portuguesa sorriu com ar simpático, mas não lhe dei conversa. À tarde, no museu, se não acenasse, não o via de certeza e só o reconheci quando falou. Fiquei então com a impressão de que só dou por anjos se falarem comigo, porque tenho sempre a cabeça no ar. A propósito de cabeça no ar, fotografei vários anjos com o céu de Berlim.

texto postado no Insónia a 18/3/2009, quando regressei de Berlim, faz agora um ano. O tempo passa depressa.

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