Nunca mais postei nada por aqui relacionado com leituras; não por não ter lido, pelo contrário, desde que entrei para o doutoramento, sou obrigada a ler muito, algo que nem sempre me dá prazer. Mas entre aulas e relatórios que vou escrevendo, acontecem coisas engraçadas: uma delas foi a conferência da professora Maria João Ortigão, sobre a cultura nos finais do séc. XIX em Portugal, onde me foi revelado um texto extraordinário: «Carta a Anatólio Camels» de Ramalho Ortigão, que foi publicada posteriormente no segundo volume de «As Farpas». Esta carta teve origem no que vou apelidar de O caso bulbo: a filha de Ramalho Ortigão, Berta, era pintora e participou em exposições dos naturalistas; numa delas, mostrou um pequeno quadro, com fundo escuro, onde representou três cebolas alinhadas. Anatólio Camels, escultor académico, conhecido por ser o autor do frontão da Rua Augusta em Lisboa, reparou no quadro e criticou-o, considerando cebolas um tema feio. Ramalho Ortigão respondeu-lhe com o pseudónimo de Simplício Feijão, defendendo que as cebolas são belas, como um horticultor o faria. Na carta, desenvolveu um registo em defesa do naturalismo, de uma forma muito criativa, alargando o campo de acção para além deste, ao colocar questões e interrogações com uma enorme profundidade. Anatólio Camels tinha censurado a pintura de Berta, afirmando: “Tão lindas mãozinhas mexendo em cebolas!...Um bulbo feio, unicamente bom para fazer chorar as cozinheiras…Quanto mais agradável seria copiar flores ou frutas!”. Ramalho Ortigão respondeu-lhe com sarcasmo, alertando-nos de que as mulheres não têm mãozinhas: “ Mãozinhas são as de carneiro, não são de gente pensante e séria”; também fez uma lista de obras de arte que têm cebolas e outros utensílios horrorosos por tema, comentando: “ Todas estas obras cairiam fatalmente reprovadas ante a censura de V.Exª, porque não só há cebolas em algumas delas, mas também há muitas outras provisões de boca, há inúmeros instrumentos e utensílios asquerosos de cozinha, há estrebarias com todos os seus acessórios, há animais imundos e animais incontinentes, há toda a espécie de sevandijas, há defuntos, há animais mortos, há bombas portáteis molierescas e há vasos rabelaiseanos, cujo aspecto carnavalesco, inteiramente ché-ché, infunde nas imaginações desregradas uma alegria perversa.” A esta lista de obras, acrescentou os grandes pintores que trataram temas feios, frisando que, no Hermitage em São Petersburg , existe a bela pintura de Paul Potter intitulada “ La vache qui pisse”; deste modo, o seu pseudónimo foi um pouco desmascarado, só um horticultor muito rico e viajado poderia argumentar assim. Também criticou o platonismo, ao considerar que cada filosofia tem o seu belo privativo; para tal, o horticultor utilizou as cartolas e chapéus da sua vida, como exemplo do belo definido pela moda e gosto:” Todos estes chapéus – à excepção unicamente do último, o mais novo, com o qual ouso ainda passar na via pública sem escândalo que perturbe sensivelmente a ordem – são de uma hediondez pungitiva, profunda, verdadeiramente aterradora. Não são simplesmente feios, são disformes, são aleijados. Acham-se pelo aspecto geral fora da natureza e fora da fisiologia, são verdadeiros sintomas mórbidos, legítimos documentos de patologia cerebral.”. Esta parte do texto deveria ser uma referência para qualquer critico de arte decente. Mas o que mais me impressionou no texto foi a defesa de que o artista deve ser sincero na sua relação com a sociedade, deve ser honesto no que produz, afirmando no final que “ A arte é a eterna desinfectante da podridão onde toca”. Grande Ramalho, visionário, acho que a boa arte continua a ser isso mesmo. E viva às cebolas pintadas pela Berta.
O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?
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Viva Ramalho Ortigão, cada vez mais o admiro!
ResponderEliminarÓtimo texto, o teu.