Ontem foi o lançamento de "Linhas de Hartmann" de Paulo Tavares, livro para o qual contribui com a imagem da capa. Deixo-vos aqui o texto que li:
Quando o Paulo me convidou para estar aqui, pediu-me também, para dizer algumas palavras: respondi-lhe que falar não é bem a minha área, sou mais de fazer com as mãos. A mão pensa, como afirmou Ana Hatherly. Acrescento que a mão para pensar tem de ouvir. Foi o que se passou em relação à capa deste livro, pensei com as mãos; mas não pensei sozinha, porque o livro resultou de um bom encontro entre o poema do Paulo Tavares, a minha pintura e o grafismo do Pedro Serpa, um ensemble que foi dirigido pela sábia mão do maestro Vítor Silva Tavares.
O principal receio de estar aqui e agora seria ter de falar do poema. Acho que é sempre difícil falar sobre poesia, porque é uma arte onde as palavras se afastam do seu uso corrente ou vulgar; na poesia a linguagem é despragmatizada, as palavras entram num processo alquímico, falando-nos através de enigmas ou paradoxos. É por isso que gosto de poesia, e dos poetas, porque não dizem “coisa com coisa”.
Entrei em diálogo com o poema do Paulo Tavares através da pintura, mas não vou falar sobre o poema, porque ele existe para o lerem, assim como a imagem da capa existe para a verem. Vou falar-vos, sim, como decorreu o encontro entre a poesia e a pintura no rosto deste livro. Segundo Plutarco, o grego Simónides, seis séculos antes de Cristo, afirmou que «a pintura é a poesia muda e a poesia uma pintura falante», ideia que Horácio retomou na sua “Arte poética”, ao considerar que a pintura é como a poesia – Ut pictura poesis. Acrescento que, se a pintura é a arte do silêncio que fala, talvez a poesia seja a própria voz do silêncio. A poesia é um quase-nada, presque-rien no dizer de Vladimir Jankelevich, filósofo francês que considerava a música o inefável, por ser a arte que diz o que não é possível dizer por palavras.
Voltando ao ensemble musical que se reuniu neste livro, para Michel Guiomar a música de câmara é sempre uma lição de humildade e humanidade, porque ela vive essencialmente da audição: um pequeno grupo junta-se para praticar e ouvir música em simultâneo, e em última instância, não necessita de público, porque os próprios intérpretes são também ouvintes. No passado, antes de existirem as gravações e outras tecnologias, era frequente, sobretudo na Europa Central, os músicos amadores encontrarem-se para a praticarem, porque era também um modo de poderem escutar música. A palavra amador aqui não foi utilizada como sinónimo de má qualidade, como é frequente hoje em dia, mas sim no verdadeiro sentido que tem, amador é o que faz com amor. Paul Klee tocava violino, assim como Kandinsky tocava violoncelo, dois pintores que amavam e praticavam música de câmara. Estou também a utilizar a palavra amador porque o Vítor Silva Tavares ao referir-se à &etc a utilizou. Foi necessário amor para criar a harmonia das partes no todo, como aconteceu neste livro, dirigido elegantemente pelo maestro editor; no dia em que fui buscar os livros à &etc, o Vítor afirmou que se ele gostar do livro, o autor também, são já duas pessoas, mais a capista, o artista gráfico é o dobro, mais dois leitores, 50%, quatro leitores é já um sucesso a 100% e assim sucessivamente. Fiquei então a acreditar que esta é a ordem natural das pequenas grandes coisas que são feitas com amor.
O meu papel no ensemble, como já referi, foi interpretar o poema, através da pintura, o instrumento que toquei; “Linhas de Hartmann” chegou-me pelas mãos de Nuno Dempster, que já me conhecia destas andanças, tinha interpretado dois poemas seus. Foi engraçado, só conheci pessoalmente o Nuno Dempster depois ter feito a imagem da capa de “Londres”, publicado também nesta editora. Também não conhecia o Paulo Tavares quando li o poema e fiz a imagem, só nos encontramos pessoalmente depois. Li “Linhas de Hartmann” pela primeira vez com febre, estava com gripe. Confesso que fiquei muito entusiasmada, mas só fiz a imagem quando a febre passou. O Paulo achou que seria engraçado afirmar aqui que quando li o poema sem febre o tinha achado uma merda; mas isso não aconteceu. E tudo por causa de um banco de jardim. Depois de ler o poema, pintei vários bancos de jardim e pendurei-os nas paredes de casa. Escolhi o que está na capa por ter algo de poltrona, achei que era o mais confortável, também por estar junto a uma forte árvore enraizada; em pano de fundo, coloquei uns prédios de marquises estilo clandestino português no escuro.
Surgiram depois problemas com o lettring que tinha colocado na imagem, não estava a resultar. No primeiro encontro com o Paulo Tavares na &etc, que foi também quando conheci pessoalmente o Vítor Silva Tavares, falamos sobre isso, entre outras coisas. O Pedro Serpa depois resolveu o problema, dando um toque de filme noir à questão: atenção, foi ele o responsável pelos néones do título e nome do autor. Nesse encontro, o Paulo comentou que gostava da textura do papel da pintura e o maestro editor lembrou-se logo de valorizar isso: posteriormente, o Pedro Serpa pediu-me que pintasse uns fundos texturados, relacionados com os tons da raiz da árvore e enviei-lhe vários. O que me surpreendeu mais no resultado final da capa, para além do modo como foram utilizados esses fundos, foi a subtil contaminação do próprio lettring da &etc, também está manchado. O rosto deste livro foi assim executado a quatro mãos, as minhas e do Pedro Serpa, a partir de “Linhas de Hartmann” e também do mote da importância das texturas, dado pelo poeta, tudo super visionado pelo editor.
Neste rosto, sou assim responsável por pintar um banco de jardim, algo que tendemos a não ver no dia-a-dia desenfreado da cidade; vivo ao lado do jardim Campo Pequeno e por vezes nem o vejo, a sobrevivência faz-nos esquecer do que é realmente importante. Vi no poema do Paulo Tavares, um banco de jardim surgir como uma pausa, um local que permitia também poder prosseguir. Agora, sempre que olhar para um, vou lembrar-me deste livro; o poema do Paulo acrescentou algo à minha realidade, um novo olhar sobre os bancos de jardim. A poesia, assim como a pintura, têm essa a capacidade de acrescentar um quase-nada à nossa existência, ao serem pausa para poder prosseguir, quase-silêncio, um espaço-tempo para ver, ouvir, ler e reflectir. Foi assim que a minha mão ouviu, foi assim que a minha mão viu, foi assim que a minha mão pensou “Linhas de Hartmann”.
Maria João Lopes Fernandes 26/3/2011
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