Telhado
Quando tinha vinte anos apaixonei-me por um rapaz daqueles que se acha piada aos vinte, mas numa festa em minha casa ele fez-me o favor de preferir uma amiga minha; no dia seguinte, ela disse-me que tudo aconteceu porque ambos eram mesmo assim e ninguém pertence a ninguém. Eu compreendi e limitei-me a observar o desenrolar dos factos sem julgamentos precoces. Ao fim da tarde, o rapaz dos vinte convidou-nos às duas para irmos a casa de um amigo gay que nos queria apresentar. Isso de chamar gay a alguém é sempre um assunto delicado e eu acho que quem tem telhados de vidro não deve andar à pedrada. Por estranho que pareça, a minha amiga entusiasmou-se, trocou o dos vinte pelo “gay” com o qual casou, teve um filho e divorciou – com violência doméstica à mistura. Passado sete anos, dei por mim a curtir com a paixão dos vinte numa noite de copos e quando ambos íamos a sair do Bairro Alto, cruzámo-nos com um amigo meu das Belas que não via há cerca de cinco; ele estava a viver em Nova Iorque e abraçou-me, efusivamente, beijando-me na boca como era usual; infelizmente, o amigo querido das Belas é homossexual, porque é uma estampa de homem; nunca mais o vi, nem lhe agradeci o facto de ele ter sido um anjo. Quanto ao dos vinte, ficou sem palavras perante a minha felicidade naquele reencontro casual, despedimo-nos como se nada tivesse acontecido, já nos voltámos a cruzar muitas vezes e permanecemos sempre em silêncio sobre estes assuntos naturais.
Lembrei-me deste texto postado no Insónia a 16/11/2006, talvez porque acordei com uma dor de costas lixada: ontem andei a carregar os livros de arte de um armário para o outro. No meio disto tudo tive coragem para deitar fora trabalhos e fotocópias antigas para ganhar espaço, fui radical, apesar das dores valeu a pena o esforço, aquela tralha não fazia falta nenhuma. Nada se faz sem consequências e quanto ao resto, o destino prega-nos partidas divertidas.
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