O que procuro em ti, eco ou planície, que não me respondes? Porque devolves apenas a minha voz?
quarta-feira, 30 de setembro de 2009
Ilustração #5
Poema #32
dentro de mim. Sede pousada no labirinto
e, no centro, aquele conhecido verso
secreto que amanhece nas açoteias.
Disponível para o sexo e para as cousas d'alma.
Ah li-o, e era um bicho exasperado
por sair à caça
com o sol a dar-lhe no dorso alquímico dos sonhos.
Dum vigésimo andar pode partir-se
com botijas de oxigénio
ou de binóculos. Precário, insubmisso
ao Estado das coisas.
São outros, porém, os cravos
da moderna paixão:
casamentos, relógios de ponto,
habitação própria domesticam
o horizonte, e o horizonte
basta.
terça-feira, 29 de setembro de 2009
Poema #31
No caminho para deus viu-se obrigado
a parar várias vezes.
Vinha do tempo das quimeras.
Partia, a passos rápidos, sem direcção
definida.
De principio não pensou em nada,
Mas a sua situação depressa se lhe mostrou
desagradável e perigosa.
Levava dentro de si a cumplicidade de um
relâmpago, trazia recados de si mesmo
para mais dentro de si próprio.
Todas as suas forças ficaram isoladas
e o tempo tinha o valor físico de um deserto.
Vivia sob lentidão extrema,
não muito longe do que jamais acontecera.
Regressou ao inanimado carácter do seu corpo,
Aos objectos do próprio quarto.
João Miguel Fernandes Jorge
Ilustração #4
segunda-feira, 28 de setembro de 2009
Leituras #17
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas.
Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Rio, novembro, 1958
Rubem Braga in «Ai de ti», Copacabana, Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149
Poema #30
Na luz do seu olhar tão lânguido, tão doce,
Havia o que quer que fosse
D’um íntimo desgosto :
Era um cão ordinário, um pobre cão vadio
Que não tinha coleira e não pagava imposto.
Acostumado ao vento e acostumado ao frio,
Percorria de noite os bairros da miséria
À busca dum jantar.
E ao ver surgir da lua a palidez etérea,
O velho cão uivava uma canção funérea,
Triste como a tristeza ossiânica do mar.
Quando a chuva era grande e o frio inclemente,
Ele ia-se abrigar às vezes nos portais ;
E mandando-o partir, partia humildemente,
Com a resignação nos olhos virginais.
Era tranquilo e bom como as pombinhas mansas ;
Nunca ladrou dum pobre à capa esfarrapada :
E, como não mordia as tímidas crianças,
As crianças então corriam-no a pedrada.
Uma vez casualmente, um mísero pintor
Um boémio, um sonhador,
Encontrara na rua o solitário cão ;
O artista era uma alma heróica e desgraçada,
Vivendo numa escura e pobre água furtada,
Onde sobrava o génio e onde faltava o pão.
Era desses que têm o rubro amor da glória,
O grande amor fatal,
Que umas vezes conduz às pompas da vitória,
E que outras vezes leva ao quarto do hospital.
E ao ver por sobre o lodo o magro cão plebeu,
Disse-lhe : - "O teu destino é quase igual ao meu :
Eu sou como tu és, um proletário roto,
Sem família, sem mãe, sem casa, sem abrigo ;
E quem sabe se em ti, ó velho cão de esgoto,
Eu não irei achar o meu primeiro amigo !..."
No céu azul brilhava a lua etérea e calma ;
E do rafeiro vil no misterioso olhar
Via-se o desespero e ânsia d’uma alma,
Que está encarcerada, e sem poder falar.
O artista soube ler naquele olhar em brasa
A eloquente mudez dum grande coração ;
E disse-lhe : - "Fiel, partamos para casa :
Tu és o meu amigo, e eu sou o teu irmão. -"
E viveram depois assim por longos anos,
Companheiros leais, heróicos puritanos,
Dividindo igualmente as privações e as dores.
Quando o artista infeliz, exausto e miserável,
Sentia esmorecer o génio inquebrantável
Dos fortes lutadores ;
Quando até lhe acudiu às vezes a lembrança
Partir com uma bala a derradeira esp’rança,
Pôr um ponto final no seu destino atroz ;
Nesse instante do cão os olhos bons, serenos,
Murmura-lhe : - Eu sofro, e a gente sofre menos,
Quando se vê sofrer também alguém por nós.
Mas um dia a Fortuna, a deusa milionária,
Entrou-lhe pelo quarto, e disse alegremente :
"Um génio como tu, vivendo como um pária,
Agrilhoado da fome à lúgubre corrente !
Eu devia fazer-te há muito esta surpresa,
Eu devia ter vindo aqui p’ra te buscar ;
Mas moravas tão alto ! E digo-o com franqueza
Custava-me subir até ao sexto andar.
Acompanha-me ; a glória há de ajoelhar-te aos pés !..."
E foi ; e ao outro dia as bocas das Frinés
Abriram para ele um riso encantador ;
A glória deslumbrante iluminou-lhe a vida
Como bela alvorada esplêndida, nascida
A toques de clarim e a rufos de tambor !
Era feliz. O cão
Dormia na alcatifa à borda do seu leito,
E logo de manhã vinha beijar-lhe a mão,
Ganindo com um ar alegre e satisfeito.
Mas aí ! O dono ingrato, o ingrato companheiro,
Mergulhado em paixões, em gozos, em delícias,
Já pouco tolerava as festivas carícias
Do seu leal rafeiro.
Passou-se mais um tempo ; o cão, o desgraçado,
Já velho e no abandono,
Muitas vezes se viu batido e castigado
Pela simples razão de acompanhar seu dono.
Como andava nojento e lhe caíra o pelo,
Por fim o dono até sentia nojo ao vê-lo,
E mandava fechar-lhe a porta do salão.
Meteram-no depois num frio quarto escuro,
E davam-lhe a jantar um osso branco e duro,
Cuja carne servira aos dentes d’outro cão.
E ele era como um roto, ignóbil assassino,
Condenado à enxovia, aos ferros, às galés :
Se se punha a ganir, chorando o seu destino,
Os criados brutais davam-lhe pontapés.
Corroera-lhe o corpo a negra lepra infame.
Quando exibia ao sol as podridões obscenas,
Poisava-lhe no dorso o causticante enxame
Das moscas das gangrenas.
Até que um dia, enfim, sentindo-se morrer,
Disse "Não morrerei ainda sem o ver ;
A seus pés quero dar meu último gemido..."
Meteu-se-lhe no quarto, assim como um bandido.
E o artista ao entrar viu o rafeiro imundo,
E bradou com violência :
"Ainda por aqui o sórdido animal !
É preciso acabar com tanta impertinência,
Que esta besta está podre, e vai cheirando mal !"
E, pousando-lhe a mão cariciosamente,
Disse-lhe com um ar de muito bom amigo :
"Ó meu pobre Fiel, tão velho e tão doente,
Ainda que te custe anda daí comigo."
E partiram os dois. Tudo estava deserto.
A noite era sombria ; o cais ficava perto ;
E o velho condenado, o pobre lazarento,
Cheio de imensas mágoas
Sentiu junto de si um pressentimento
O fundo soluçar monótono das águas.
Compreendeu enfim! Tinha chegado à beira
Da corrente. E o pintor,
Agarrando uma pedra atou-lh’a na coleira,
Friamente cantando uma canção d’amor.
E o rafeiro sublime, impassível, sereno,
Lançava o grande olhar às negras trevas mudas
Com aquela amargura ideal do Nazareno
Recebendo na face o ósculo de Judas.
Dizia para si : "É o mesmo, pouco importa.
Cumprir o seu desejo é esse o meu dever :
Foi ele que me abriu um dia a sua porta :
Morrerei, se lhe dou com isso algum prazer."
Depois, subitamente
O artista arremessou o cão na água fria.
E ao dar-lhe o pontapé caiu-lhe na corrente
O gorro que trazia
Era uma saudosa, adorada lembrança
Outrora concedida
Pela mais caprichosa e mais gentil criança,
Que amara, como se ama uma só vez na vida.
E ao recolher à casa ele exclamava irado :
"E por causa do cão perdi o meu tesouro !
Andava bem melhor se o tinha envenenado !
Maldito seja o cão! Dava montanhas d’oiro,
Dava a riqueza, a glória, a existência, o futuro,
Para tornar a ver o precioso objecto,
Doce recordação daquele amor tão puro."
E deitou-se nervoso, alucinado, inquieto.
Não podia dormir.
Até nascer da manhã o vivido clarão,
Sentiu bater à porta ! Ergueu-se e foi abrir.
Recuou cheio de espanto : era o Fiel, o cão,
Que voltava arquejante, exânime, encharcado,
A tremer e a uivar no último estertor,
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado,
O gorro do pintor !
Guerra Junqueiro
encontrado aqui
domingo, 27 de setembro de 2009
Dia-a-dia #21
Ilustração #3
sexta-feira, 25 de setembro de 2009
Ilustração #2
quinta-feira, 24 de setembro de 2009
Ilustração #1
Portefólio #9
Em Janeiro de 1995 retornei às Belas-Artes a tempo inteiro, para estudar escultura: já tinha faltado a 3 meses do ano lectivo por causa da estadia no Canadá. Foi tudo muito surrealista, como se tivesse vindo de um filme de ficção científica para a idade da pedra lascada; no Canadá a escola estava aberta 24h, tinha atelier próprio, ampliadores, câmara-escura para trabalhar à vontade e professores que acompanhavam o meu projecto. Nas Belas-Artes, as oficinas de escultura eram nas caves, chovia lá dentro, os professores ditavam exercícios, exigiam uma enorme quantidade de trabalho, mas eram poucos os que se davam ao trabalho de ensinar. O ano correu bastante mal: por exemplo, tive de modelar o retrato de um colega na cadeira de “modelos”, o professor era o autor da escultura do Sá-Carneiro no Areeiro, Mestre Soares Branco, ou Bronco como era conhecido já desde a década de 50 do séc. XX. Foi complicado, ele pedia-nos para trabalharmos a partir de fotografias, quando os colegas estavam ali ao nosso lado, mas depois despachava tudo com grandes notas. Fiz o retrato que aqui está e depois diverti-me um bocado, mas não o apresentei assim de língua de fora na avaliação. Tínhamos avaliações trimestrais nas cadeiras práticas, era coisa pública onde estávamos sujeitos às variações de humores dos professores. Nas aulas, normalmente, éramos salvos por alguns assistentes novos que nos davam apoio. Nas cadeiras teóricas era diferente, no geral os professores eram bons, as aulas eram no 1º andar do edifício e aí a vida corria-me melhor. Quanto à escultura, nesse ano tentei executar umas peças em polyurterano expandido que encolheram de um dia para o outro. Nunca entendi o que aconteceu e fui penalizada por isso, sentia-me dentro de um livro de Kafka. No entanto, nem tudo foi mau: na cadeira de desenho ilustrei os “ Contos da Montanha” de Miguel Torga, vou colocá-los por cá num espaço novo dedicado à ilustração; mas a avaliação final de desenho também foi um horror: apareceu uma múmia de nome Matos Simões, que eu nunca tinha visto na vida, nem me deu aulas e que desatou aos berros, porque não gostou do modo como os desenhos estavam apresentados. Depois contaram-me que era vulgar ele ter esse tipo de ataques com mulheres. Lembro-me de desabafar com uma professora assistente de escultura, uma boa alma que por lá andava e de ela me contar que a democracia tinha mudado muito o nosso país, até as Belas-Artes, porque antigamente os professores mandavam as alunas para casa cozer meias. Nas Belas apanhei zombies desse tipo, tive muito azar com eles. Um colega dizia que derivava de eu me rir, é verdade, quando fico nervosa me vez de chorar dá-me para rir. Espero que esses zombies já estejam todos mortos.
Aprende-se com os gatos #5
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quarta-feira, 23 de setembro de 2009
Aprende-se com os gatos #4
Gioachino António Rossini (1792-1868), célebre compositor de óperas como “ O barbeiro de sevilha" é o autor desta magnifica peça intitulada "Duetto Buffo di Due Gatti", composta inicialmente para duas sopranos, mas aqui maravilhosamente interpretada por estes rapazes – no Youtube também podem visionar uma versão interpretada por Montserrat Caballé e Concha Velasco.
Poema #29
Os literaduros Os literadonos
Com berros e murros se levam os tolos
Que vento os enfuna Ninguém lhes resiste
Ó literadunas Ó literadiques
Vão tendo alianças entrando em conluios
Com literadamas com literadúbios
Cada vez mais sábios cada vez mais finos
Literadurázios Literadurinhos
Tão literadoces literadurázios
Já parecem outros em seus ricos pátios
Tão literadoutos literadurinhos
Coitados de todos literadormindo
David Mourão-Ferreira
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terça-feira, 22 de setembro de 2009
Poema #28
O barco vai
o barco vem
português vai
português vem
o corpo cai
o corpo dói
português vai
português cai
o barco vai
o barco vem
português vai
português vem
o país cai
o país dói
o tempo vai
o tempo dói
português cai
português vai
português sai
português dói
Ana Hatherly
segunda-feira, 21 de setembro de 2009
Poema #27
A minha casa é concha.
Como os bicos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.
Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.
E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.
A minha casa…Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.
Vitorino Nemésio
sábado, 19 de setembro de 2009
Dia-a-dia #20
quarta-feira, 16 de setembro de 2009
Dia-a-dia #19
domingo, 6 de setembro de 2009
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sábado, 5 de setembro de 2009
Dia-a-dia #17
terça-feira, 1 de setembro de 2009
Poema #26
Olá amor… não não disse estupor!
Passou bem a sua tarde?
Não disse que chegaste tarde.
Vou jogar ténis, mas estarei aí
a tempo de vermos juntinhos
a telenovela!
Não queres ser cindarela?
Oh filha por amor de deus!
Não pronuncio o nome de Deus
em quê? Cabrão?
Cabrão era o filho da puta
do teu pai. Ouviste?
Em vão.
Jorge Aguiar Oliveira in “Homens sem soutien”, Edição de autor, Lisboa 2002
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